Certa vez,
quando o fundador da Companhia se achava absorto naquela ideia fixa, que tanto
o obcecava, de conquistar o mundo, caiu numa sonolência profunda, e teve um pesadelo.
Viu-se, sem saber como, às portas do Inferno. Guardava a entrada do Hades luzido
demônio, de chavelhos retorcidos, e cauda eriçada, terminando em penacho. O Geral
interpela-o:
— Estão aí os
hereges e os ímpios, padecendo a justa punição que merecem?
— Enganais-vos.
Os ímpios e hereges converteram-se e alcançaram a salvação.
— Ah! já sei;
estão aí os homicidas, os ladrões, os incendiários, os bandidos?
— Não estão.
Purificaram-se no cadinho da dor, onde expiaram seus crimes; estão salvos.
— Compreendo
agora. Acham-se sob os domínios de Satã os perjuros, os tiranos que oprimiram
os povos, os ricos avarentos que menosprezaram a pobreza, os sátiros e os
políticos profissionais?
— Ainda não
acertastes. Todos esses pecadores encontraram na sentença — "quem com
ferro fere, comferro será ferido" — o seu meio de reabilitação. Foram
redimidos, passando pelo que fizeram passar os outros.
— Nesse caso, o
Inferno não passa de um mito. Uma vez que ninguém é condenado, o Hades não é
mais que uma ficção cujo prestígio, fundado em mera fantasia, acabará
desaparecendo, pondo assim o valor da Companhia em perigo?
— Errastes ainda
uma vez. O Inferno, cujos portais com ufania guardo e defendo, é uma realidade.
Há muita gente cá dentro. Quereis saber quem são os condenados? São os
hipócritas, os falsos mentores do povo que mercadejavam com a religião,
abusando da credulidade dos pequenos e corrompendo a consciência dos grandes.
São os mercadores do Templo, os traficantes da fé, os que devoravam as casas
das viúvas e dos órfãos a pretexto de oração. São os embrutecedores da razão,
os piratas do pensamento, os inimigos da verdade. São, finalmente, aqueles que
outrora, num brado colérico e rouquenho, clamavam a Pilatos: Solta Barrabás!
Crucifica Jesus-Cristo!
— Apre! Que
horrível pesadelo! Esta só lembra ao Diabo! — disse Loiola, erguendose, espavorido;
pois escutava ainda o eco longínquo daquele vozerio, que exigia a crucificação
do Filho de Deus.
Livro: Nas
Pegadas do Mestre.
Vinícius.
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