“O livro dos
espíritos é, sem a menor sombra de dúvida, um verdadeiro Sol. Quando o abrimos,
ele nos ilumina; quando o fechamos, ele não se apaga, porque prossegue
irradiando.” (1)
Pode-se afirmar
que O livro dos espíritos surgiu de uma idéia e da iniciativa do professor
francês Hippolyte Léon Denizard Rivail (1804– 1869), que em 1854 começaria a
ser informado por parte de amigos acerca dos fenômenos das mesas girantes. O
primeiro deles, Fortier, comenta em duas ocasiões os efeitos do Magnetismo nas
tables tournantes ou table-moving (para os ingleses). Não eram apenas as
pessoas que podiam ser magnetizadas, informa em Obras póstumas, (2) “[…] mas
também as mesas, conseguindo-se que elas girem e caminhem à vontade” (it. A
minha iniciação no Espiritismo, p. 237). Logo depois Fortier acrescenta novas
informações: “[…] não só se consegue que uma mesa se mova, magnetizando-a, como
também que fale. Interrogada, ela responde” (p. 237 e 238).
Estava sendo
dado o ponto de partida da vida missionária daquele que assinaria as obras da
Terceira Revelação com o pseudônimo Allan Kardec.
Em 1855, surge
outro amigo, Carlotti, natural da Córsega, ardoroso e enérgico, que reforça as
informações sobre os inusitados fenômenos, destacando em seu diálogo com o
famoso pedagogista, educador e ex-aluno de Johann Heinrich Pestalozzi
(1746–1827), a partir de 1814, em Yverdon, na Suíça, a surpreendente informação
acerca da intervenção dos Espíritos nesses fatos que atraíam inúmeros curiosos
em Paris, os quais se reuniam nos salões de suas residências para praticar e
observar esses fenômenos.
Carlotti faz um
prognóstico ao professeur Rivail: “Um dia o senhor será dos nossos” (p. 239). O
mestre das letras francesas, autor de várias obras didáticas,
surpreendentemente não se abala ou desdenha os comentários e a conjetura do velho
amigo de 25 anos. Responde-lhe de forma intuitiva, como se estivesse esperando,
há muitos anos, aquele momento singular em sua diamantina vida: “Não direi que
não […] veremos isso mais tarde” (p. 239).
E, efetivamente,
passado algum tempo, o insigne diretor de educandários, tradutor de obras e
contabilista dá início, no mês de maio de 1855, ao calendário da fase de
observações dos fenômenos. A primeira
residência que visita é a da Sra. Roger, acompanhado pelo amigo Fortier,
encontrando-se ali com o Sr. Pâtier e a médium Sra. Plainemaison. Os comentários por parte dos anfitriões
suscitam em Rivail “viva impressão”. Pâtier convida-o para assistir às reuniões
experimentais que ocorriam na casa da referida médium, à rua Grange-Batelière,
18, Paris, e ele aceita, imediatamente.
O dia dessa
histórica reunião passaria a ser célebre nos Anais do Espiritismo nascente: uma
terça-feira de maio às oito horas da noite. Em outra reunião, no mesmo local,
irá conhecer a família Baudin. As conexões e simpatia mútua são imediatas.
Passa então a assistir, a convite do chefe da família, o Sr. Émile-Charles
Baudin, às sessões semanais que se realizavam em sua residência à rua
Rochechouart, das quais participavam sua esposa, Clémentine, e as filhas Julie
e Caroline, respectivamente com 14 e 16 anos.
“Foi nessas
reuniões que comecei os meus estudos sérios de Espiritismo […]” (p. 240),
anotaria Rivail no livro das Previsões relativas ao espiritismo, manuscrito que
redigiria com especial cuidado e que viria a lume somente em 1890, sob o título
de Obras póstumas, contendo textos inéditos de sua lavra, graças à iniciativa
de Pierre-Gaëtan Leymarie (1827–1901), amigo do casal Denizard.
Durante as
sessões em que participava na casa da família Baudin, inicialmente não
vislumbrou nenhum fim determinado para aquele movimento entre dois mundos que
interagiam por meio de fenômenos e informações, aproveitando-os o professor
Rivail para instruir-se pessoalmente. Foi quando notou que tudo aquilo “[…] constituía
um todo e ganhava as proporções de uma doutrina […]” (p. 241). E teve um
insight, “[…] a ideia de publicar os ensinos recebidos, para instrução de toda
gente” (p. 241). Esses ensinos recebidos eram as “questões que, sucessivamente
desenvolvidas e completadas, constituíram a base de O livro dos espíritos” (p.
241).
Emociona a
anotação que fez sobre aqueles dias primordiais, daquelas primeiras horas de
sua vida missionária:
[…] mais de dez
médiuns prestaram concurso a esse trabalho. Da comparação e da fusão de todas
as respostas, coordenadas, classificadas e muitas vezes retocadas no silêncio
da meditação, foi que elaborei a primeira edição de O livro dos espíritos […]”
(p. 242).
Ocorreram
momentos especiais durante a elaboração da obra. Em 25 de março de 1856, no
apartamento de Rivail, localizado na rua dos Martyrs, 8, segundo andar, ao
fundo, o Mundo Espiritual, organizador e coordenador da concretização do
advento do Consolador Prometido por Jesus (João, 14:15 a 17), demonstra a sua
presença por meio de repetidas pancadas nas paredes da residência, para alertar
o futuro Codificador do Espiritismo a respeito de um equívoco relativamente aos
estudos que ele fazia e anotava no capítulo que escrevia acerca dos Espíritos e
de suas manifestações. (it. Meu guia espiritual, p. 244.)
Há um instante
em que, percebendo a importância e urgência do empreendimento, realiza em 10 de
junho de 1856 reunião na casa do Sr. Roustan e, por meio da médium Srta.
Ruth-Celine Japhet, consulta o Espírito Hahnemann se poderia ser auxiliado por
um cidadão que registra em suas memórias pessoais como B…: “[…] para
[justificando a sua pergunta] andarmos mais depressa […]” (it. O livro dos
espíritos, p. 250). Contudo, a sua petição é desaconselhada. “B… era médium
escrevente muito maleável, mas assistido por um Espírito orgulhoso, déspota e
arrogante […]” (Nota, p. 251).
Relata o
escritor Jean Prieur (1914–2016) que, uma vez concluída a obra (utilizando do
heterônimo Allan Kardec para identificar a autoria, nome que tivera em antiga
reencarnação nas Gálias, como lhe fora revelado), passou a procurar uma
editora. Consulta, primeiramente, o amigo Sr. Didier: “Será que o senhor não é
o mais indicado?”. Ouve então a recusa: “Este livro não se insere no âmbito das
nossas coleções acadêmicas”. E pede desculpas. “Todos os editores potenciais
respondem como ele, lamentando e louvando. Mas ninguém quis arriscar dinheiro
em um autor desconhecido e num livro sem futuro”, destaca Jean Prieur em sua
obra Allan Kardec et son époque (Allan Kardec e sua época). (3)
O professor
Canuto Abreu (1892–1980), em O livro dos espíritos e sua tradição histórica e
lendária, (4) de sua autoria, recorrendo a especial narrativa, relata a visita
do professor Rivail, em fins do ano de 1856, ao livreiro Edouard-Justin Dentu
(1830–1884), cuja sede comercial era na rua Montpensier, em frente à Galeria
d’Orléans, no Palais Royal, em Paris, portando os manuscritos de O livro dos
espíritos.
O livreiro recebe-o
com má vontade. Ele estava concluindo o inventário de várias obras encalhadas,
escritas sobre o Spiritualism e diz ao nascente Codificador do Espiritismo: “Esse
assunto, meu caro senhor, não nos interessa mais.
É batidíssimo e
está fora de voga. A França não se importa mais com o ‘Spiritualisme’. Nosso
depósito está repleto de ‘Mesas que rodam’, ‘Mesas que dançam’, ‘Mesas que
falam’, ‘Mesas que adivinham’, Mesas, enfim, que ninguém mais lê. Essa
brincadeira já passou da moda” (p. 9).
O professor Rivail,
porém, mantém-se sereno e declara: “Desejava apenas o seu orçamento
tipográfico, pois vou editar a obra por minha conta e risco. É possível?” (p.
9).
Monsieur Dentu
reluta, alega outros motivos para a recusa, quando, de repente, chega à loja
madame Mélanie Dentu, mãe do livreiro e também proprietária. Ela cumprimenta o prof. Rivail e
pergunta-lhe: “Trouxe afinal seus cadernos professor? […] É uma honra para nós
editar o seu livro […]” (p. 9). Percebendo que já havia entendimentos
anteriores sobre a impressão da obra, o livreiro muda de atitude e acrescenta,
constrangido: “[…] Se não tem muita pressa, deixe conosco os seus cadernos.
Quantos exemplares pretende?[…]” (p. 9).
Poucos dias
depois o livreiro encontraria, sobre a mesa de trabalho, um memorando assinado
pela Sra. Dentu, remetendo os cadernos que comporiam a primeira obra da
codificação espírita à “Tipografia De Beau” (p. 9), para impressão. No texto do
memorando ela havia destacado, em vermelho: “[…] Urgente e preferencial” (p.
9).
Ainda resistindo
quanto à validade da obra, o jovem livreiro ouve sua mãe dizer-lhe que a obra
era impressionante e sugeriu-lhe: “[…] Examine-lhe uma ou outra página, ao
acaso, e verá que não estou exagerando […]” (p. 9). Atendendo-lhe o pedido,
Dentu lê os originais e, entusiasmado, envia a obra à tipografia, destacando o
urgente e preferencial, passando a ser ele “o mais apressado a lançar O LIVRO”
(p. 9).
Por que O livro
dos espíritos é urgente e preferencial? Destaquemos alguns depoimentos:
O escritor
francês Victorien Sardou (1831–1908), leu a obra e antes mesmo de haver chegado
ao fim da leitura, escreveu a Kardec elogiosa carta, publicada em Allan Kardec,
o educador e o codificador,(5) destacando que O livro dos espíritos “É o livro
mais interessante e instrutivo que já li. […] É o livro da vida, é o guia da
Humanidade” (p. 284).
Um abade
francês, de nome Leçanu, autor de A história de satanás, assim diz no seu
livro: “Observando-se as máximas de O livro dos espíritos, de Allan Kardec,
faz-se o bastante para se tornar santo na Terra” (p. 285). “Quem quer que leia
esse livro, nele meditando, como eu, encontrará tesouros inesgotáveis de
consolações, pois que ele abarca todas as fases da existência” (p. 285),
escrevia a Kardec, em 25 de abril de 1857, um capitão reformado, da cidade de
Bordeaux. Humilde filho do povo, de Lyon, exprimia também ao Codificador o seu
reconhecimento pela publicação de O livro dos espíritos e falava da felicidade
que essa obra lhe trouxe ao coração.
O Espírito
Vianna de Carvalho destaca que é “[…] nesse momento de expressivas e complexas
realidades que aparece O LIVRO DOS ESPÍRITOS como resposta do Céu às perguntas
aflitas da Terra […]” e que “[…]
Todas as armas
se levantam contra o livro monumental”, mas enfatiza que “[…] Allan Kardec
estava preparado para a reação. O Livro dos Espíritos veio e ficou. Seus
ensinamentos estão aí, insuperáveis, atravessando os tempos. (6)
Durante mais de
quarenta anos, desde que ingressara em Yverdon, o grande amor da existência do
pedagogo Hippolyte Léon Denizard Rivail
tinha sido a educação, o ensino, mas ao concluir O livro dos espíritos,
declara:
[…] foi a obra
da minha vida. Dei-lhe todo o meu tempo, sacrifiquei-lhe o meu repouso [1][2],
a minha saúde, porque o futuro estava escrito diante de mim em letras
irrecusáveis. (7) (Grifo nosso.)
E naquele
primaveril sábado em Paris, em 18 de abril de 1857, há 160 anos, a promessa de
amor de Jesus, da vinda do Consolador, é consolidada por Allan Kardec com a
publicação de O livro dos espíritos, em tiragem de 1.200 volumes na primeira
edição [princeps], de capa cor cinza-esverdeada, com 501 perguntas. “Era em
formato grande, in-8o, com 176 páginas de texto, e apresentava o assunto
distribuído em duas colunas”. [3]
Em 11 de julho
de 1857, em edição do jornal Courrier de Paris o jornalista G. Du Chalard,
amigo do livreiro Dentu e de quem recebera, de presente, um exemplar dava o seu
parecer sobre a obra estampando extenso artigo:
O livro dos
espíritos, do Sr. Allan Kardec, é uma página nova do grande livro do infinito,
e estamos convencidos de que esta página será assinalada […]. Não conhecemos o
autor, mas confessamos, abertamente, que ficaríamos felizes em conhecê-lo. Quem
escreveu a introdução de O livro dos espíritos deve ter a alma aberta a todos
os sentimentos nobres.[…]
A todos os
deserdados da Terra, a todos quantos avançam ou caem, regando com as lágrimas o
pó da estrada, diremos: Lede O livro dos espíritos; ele vos tornará mais
fortes. Também aos felizes, aos que em seu caminho só encontram as aclamações
da multidão e os sorrisos da fortuna, diremos: Estudai-o e ele vos tornará
melhores”.[4]
Em belo soneto,
intitulado Falando a Kardec, publicado em Reformador de abril de 1977, (10)
ditado ao médium Francisco Cândido Xavier, o Espírito Cruz e Souza, poeta
catarinense, presta comovedora homenagem a Allan Kardec, destacando as
consequências do advento de O livro dos espíritos:
Apóstolo da luz ditosa e bela,
Quando desceste da Divina Altura,
Surgia a Terra desolada e escura
Por agressiva e torva cidadela.
Qual nau sublime que se desmantela,
Naufragava na sombra a fé mais pura
E envolvia-se o templo da cultura
No turbilhão de indômita procela…
Mas trouxeste equilíbrio ao caos
nefando,
E “O Livro dos Espíritos”, brilhando,
Rompe a noite mental, espessa e fria!
Ante o sol da verdade a que te elevas,
Revelaste Jesus ao mundo em trevas
E acendeste o clarão do novo dia.
Referências:
1 FRANCO, Divaldo. In: PUGLIESE,
Adilton; CHRISPINO, Álvaro. Reconhecimento a Allan Kardec. 1. ed. LEAL, 2006.
p. 40.
2 KARDEC, Allan. Obras póstumas. Trad.
Evandro Noleto Bezerra. 2. ed. 1. imp. Brasília: FEB, 2016. pt. 2 Extratos, in
extenso, do livro das Previsões relativas ao espiritismo, p. 237 a 242, 244,
250, 251.
3 PRIEUR, Jean. Allan Kardec e sua
época. 1. ed. São Paulo: Lachâtre, 2015. p. 69.
4 ABREU, Canuto. O livro dos espíritos e
sua tradição histórica e lendária. 2. ed. São Paulo: LFU, 1996. cap. 1 – No dia
18 de abril de 1857, p. 9.
5 WANTUIL, Zêus; THIESEN, Francisco.
Allan Kardec: o educador e o codificador. v. 1. 3. ed. Brasília: FEB, 2007. pt.
2, cap. 1.
6 FRANCO, Divaldo P. À luz do
espiritismo. Pelo Espírito Vianna de Carvalho.5. ed. Salvador: LEAL, 2006. cap.
O livro imortal, p. 16 e 17.
7 KARDEC, Allan. Obras póstumas. Trad.
Evandro Noleto Bezerra. 2. ed. 1. imp. Brasília: FEB, 2016. pt. 2, Constituição
do Espiritismo, it. X – Allan Kardec e a nova constituição do Espiritismo, p.
329.
8 WANTUIL, Zêus; THIESEN, Francisco.
Allan Kardec: o educador e o codificador. v. 1. 3. ed. Brasília: FEB, 2007. pt.
2, cap. 1, p. 274.
9 ____.____. p. 285. (Vide também
Revista Espírita de jan. 1858, trad. Evandro Noleto Bezerra, p. 63 e 64.)
10 Reformador. ano 95, n. 1.777, abril
1977, p. 11(103). Soneto segundo Folheto do Grupo Espírita Emmanuel, intitulado
“Da Biblioteca Espírita – Lembrando o Auto-de-fé de Barcelona, 1861”, edição de
outubro de 1961, Garça (SP).
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