quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

V - Escolha das Provas

258. No estado errante, antes de nova existência corpórea, o Espírito tem consciência e previsão do que lhe vai acontecer durante a vida?
— Ele mesmo escolhe o gênero de provas que deseja sofrer; nisto consiste o seu livre-arbítrio.
258-a. Não é Deus quem lhe impõe as tribulações da vida, como castigo?
— Nada acontece sem a permissão de Deus porque foi ele quem estabeleceu todas as leis que regem o Universo. Perguntareis agora por que ele fez tal lei em vez de tal outra! Dando ao Espírito a liberdade de escolha, deixa-lhe toda a responsabilidade dos seus atos e das suas conseqüências; nada lhe estorva o futuro; o caminho do bem está à sua frente, como o do mal. Mas se sucumbir, ainda lhe resta uma consolação, a de que nem tudo se acabou para ele, pois Deus, na sua bondade, permite-lhe recomeçar o que foi mal feito. É necessário distinguir o que é obra da vontade de Deus e o que é da vontade do homem. Se um perigo vos ameaça, não fostes vós que o criastes, mas Deus; tiveste, porém, a vontade de vos expordes a ele, porque o considerastes um meio de adiantamento; e Deus o permitiu.
259. Se o Espírito escolhe o gênero de provas que deve sofrer, todas as tribulações da vida foram previstas e escolhidas por nós?
— Todas, não, pois não se pode dizer que escolhestes e previstes tudo o que vos acontece no mundo, até as menores coisas. Escolhestes o gênero de provas; os detalhes são conseqüências da posição escolhida, e freqüentemente de vossas próprias ações. Se o Espírito quis nascer entre malfeitores, por exemplo, já sabia a que deslises se expunha, mas não conhecia cada um dos atos que praticaria; esses atos são produtos de sua vontade ou do seu livre-arbítrio. O Espírito sabe que, escolhendo esse caminho, terá de passar por esse gênero de lutas; e sabe de que natureza são as vicissitudes que irá encontrar; mas não sabe quais os acontecimentos que o aguardam. Os detalhes nascem das circunstâncias e da força das coisas. Só os grandes acontecimentos, que influem no destino, estão previstos. Se tomas um caminho cheio de desvios, sabes que deves ter muitas precauções, porque corres o perigo de cair, mas não sabes quando cairás, e pode ser que nem caias, se fores bastante prudente. Se ao passar pela rua, uma telha te cair na cabeça, não penses que estava escrito, como vulgarmente se diz.
260. Como o Espírito pode querer nascer entre gente de má vida?
— É necessário ser enviado ao meio em que possa sofrer a prova pedida. Pois bem: o semelhante atrai o semelhante, e para lutar contra o instinto do bandido é preciso que ele se encontre entre gente dessa espécie.
260-a. Se não houvesse gente de má vida na Terra, o Espírito não poderia encontrar nela o meio necessário a certas provas?
— E deveríamos lamentar isso? É o que acontece nos mundos superiores, onde o mal não tem acesso. É por isso que neles só existem bons Espíritos. Fazei que o mesmo aconteça, bem logo,em vossa Terra.
261. O Espírito, nas provas que deve sofrer para chegar à perfeição, terá de experimentar todos os gêneros de tentações? Deverá passar por todas as circunstâncias que possam provocar-lhe o orgulho, o ciúme, a avareza, a sensualidade, etc.?
— Certamente não, pois sabeis que há os que tomam desde o princípio, um caminho que os afasta de muitas provas. Mas aquele que se deixa levar pelo mau caminho, corre todos os perigos do mesmo. Um Espírito pode pedir a riqueza e esta lhe será dada; então, segundo o seu caráter, poderá tornar-se avarento ou pródigo, egoísta ou generoso, ou ainda entregar-se a todos os prazeres da sensualidade. Mas isso não quer dizer que ele devia passar forçosamente por todas essas tendências.
262. Como pode o Espírito, que em sua origem é simples, ignorante e sem experiência, escolher uma existência com conhecimento de causa e ser responsável pela sua escolha?
— Deus supre a sua inexperiência, traçando-lhe o caminho que deve seguir, como fazes com uma criança desde o berço. Mas deixa-lhe pouco a pouco a liberdade de escolher, à medida que o seu livre-arbítrio se desenvolve. É então que ele muitas vezes se extravia, tomando o mau caminho, por não ouvir os conselhos dos bons Espíritos. É a isso que podemos chamar a queda do homem.
262-a. Quando o Espírito goza do seu livre-arbítrio, a escolha da existência corpórea depende sempre exclusivamente da sua vontade, ou essa existência pode lhe ser imposta pela vontade de Deus, como expiação?
— Deus sabe esperar: não precipita a expiação. Entretanto, pode impor certa existência a um Espírito, quando este, por sua inferioridade ou má vontade, não está apto a compreender o que lhe seria mais proveitoso, e quando vê que essa existência pode servir para a sua purificação, o seu adiantamento, e ao mesmo tempo servir-lhe de expiação.
263. O Espírito faz a escolha imediatamente após a morte?
— Não, pois muitos crêem na eternidade das penas, e como já vos foi dito, isso é um castigo.
264. O que orienta o Espírito na escolha das provas?
— Ele escolhe as que podem servir de expiação, segundo a natureza de suas faltas, e fazê-lo adiantar mais rapidamente. Uns podem impor-se uma vida de misérias e provações para tentar suportá-la com coragem; outros, querem experimentar as tentações da fortuna e do poder, bem mais perigosas, pelo abuso e o mau emprego que se lhes pode dar e pelas más paixões que desenvolvem; outros, enfim, querem ser provados nas lutas que terão de sustentar no contato com o vício.
265. Se alguns dos Espíritos escolhem o contato com o vício, como prova, há os que o escolhem por simpatia e pelo desejo de viver num meio adequado aos seus gostos, ou para poderem entregar-se livremente às suas inclinações materiais?
— Há, por certo, mas só entre aqueles cujo senso moral é ainda pouco desenvolvido; a prova decorre disso, e eles a sofrem por tempo mais longo. Cedo ou tarde compreenderão que a satisfação das paixões brutais tem para eles conseqüências deploráveis, que terão de sofrer durante um tempo que lhes parecerá eterno. Deus poderá deixá-los nesse estado até que eles tenham compreendido suas faltas, pedindo por si mesmos o meio de resgatá-las em provas proveitosas.
266. Não parece natural que os Espíritos escolham as provas menos penosas?
— Para vós, sim; para o Espírito, não. Quando ele está liberto da matéria, cessa a ilusão, e a sua maneira de pensar é diferente.
O homem, submetido na Terra à influência das idéias carnais, só vê nas suas provas o lado penoso. É por isso que lhe parece natural escolher as que, do seu ponto de vista, podem subsistir com os prazeres materiais. Mas na vida espiritual ele compara os prazeres fugitivos e grosseiros com a felicidade inalterável que entrevê, e então, que lhe importam alguns sofrimentos passageiros? O Espírito pode escolher a prova mais rude, e em conseqüência a existência mais penosa, com a esperança de chegar mais depressa a um estado melhor, como o doente escolhe muitas vezes o remédio mais desagradável, para se curar mais rapidamente. Aquele que deseja ligar o seu nome à descoberta de um país desconhecido, não escolhe um caminho coberto de flores, pois sabe os perigos que corre, mas sabe também a glória que o espera, se for feliz.
A doutrina da liberdade de escolha das nossas existências, e das provas que devemos sofrer, deixa de parecer extraordinária, quando se considera que os Espíritos, libertos da matéria, apreciam as coisas de maneira diferente da nossa. Eles antevêem o fim, e esse fim lhe parece muito mais importante que os prazeres fugidios do mundo. Depois de cada existência, vêem o progresso que fizeram e compreendem quanto ainda lhes falta em pureza, para o atingirem. Eis porque se submetem voluntariamente a todas as vicissitudes da vida corpórea, pedindo eles mesmos aquelas que podem fazê-los chegar mais depressa. Não há pois motivo para nos admirarmos de que o Espírito não dê preferência à existência mais suave. No seu estado de imperfeição, ele não pode desfrutar a vida sem amarguras, que apenas entrevê. E é para atingi-la que procura melhorar-se.
Não vemos diariamente exemplos de coisas parecidas? O homem que trabalha uma parte de sua vida, sem tréguas nem descanso, a fim de ajuntar o necessário para o seu bem-estar, não desempenha uma tarefa que se impôs, com vistas a um futuro melhor? O militar que se oferece para uma missão perigosa, o viajante que não enfrenta menores perigos, no interesse da ciência ou de sua própria fortuna, não se submetem a provas voluntárias, que devem proporcionar-lhe honra e proveito, se as vencerem? A que o homem não se submete e não se expõe, pelo seu interesse ou pela sua glória? Todos os concursos não são provas voluntárias para melhorar na carreira escolhida? Não se chega a nenhuma posição social de elevada importância, nas ciências, nas artes, na indústria, sem passar pela série de posições inferiores, que são outras tantas provas. A vida humana é assim o decalque da vida espiritual. Nela encontramos, em menor escala, todas as peripécias daquela. Se na vida terrena escolhemos muitas vezes as provas mais difíceis, com vistas a um fim mais elevado, por que o Espírito, que vê mais longe, e para quem a vida do corpo é apenas um incidente fugaz, não escolherá uma existência penosa e laboriosa, se ela o deve conduzir a uma felicidade eterna? Aqueles que dizem que, se pudessem escolher a sua existência, teriam pedido a de príncipes ou milionários, são como os míopes que não vêem o que tocam, ou como as crianças gulosas, que respondem, quando perguntamos que profissão preferem: pasteleiros ou confeiteiros.
Da mesma maneira, o viajante, no fundo de um vale nevoento, não vê a extensão nem os pontos extremos da sua rota; mas, chegando ao cume da montanha, seu olhar abrange o caminho percorrido e o que falta a percorrer, vê o final de sua viagem, os obstáculos que ainda tem de vencer, e pode então escolher com mais segurança os meios de o atingir. O Espírito encarnado é como o viajante no fundo do vale; desembaraçado dos liames terrestres, é como o que atingiu o cume. Para o viajante, o fim é o repouso após a fadiga; para o Espírito é a felicidade suprema, após as tribulações e as provas.
Todos os Espíritos dizem que, no estado errante, buscam, estudam, observam, para fazerem suas escolhas. Não temos um exemplo disso na vida corpórea? Não buscamos muitas vezes, através dos anos, a carreira que livremente acabamos por escolher, porque a achamos a mais apropriada aos nossos objetivos? Se fracassamos numa, procuramos outra. Cada carreira que abraçamos é uma fase, um período da vida. Não empregamos cada dia em escolher o que faremos no outro?
Ora, o que são as diferentes existências corpóreas para o Espírito, senão fases, períodos, dias da sua vida espírita que, como sabemos, é a vida normal, não sendo a vida corpórea mais do que transitória, passageira?
267. O Espírito poderia fazer a sua escolha durante a vida corporal?
— Seu desejo pode ter influência. Isso depende da intenção. Mas, no estado de Espírito, freqüentemente vê as coisas de maneira diferente. É o Espírito quem faz a escolha. Mas, ainda assim, ele pode fazê-la nesta vida material, porque o Espírito tem sempre os momentos em que se liberta da matéria.
267-a. Muitas pessoas desejam grandezas e riquezas, mas não o será, por certo como expiação nem como prova?
— Sem dúvida; a matéria deseja essa grandeza, para gozá-la, e o Espírito a deseja para conhecer-lhe as vicissitudes.
268. Até que chegue ao estado de perfeita pureza, o Espírito tem de passar constantemente por provas?
— Sim, mas elas não são como as entendeis. Chamais provas às tribulações materiais; ora, o Espírito, chegando a um certo grau, mesmo sem ser perfeito, não tem mais nada a sofrer. Mas tem sempre deveres que o ajudam a se aperfeiçoar, e que não são penosos para ele, a não ser os de ajudar os outros a se aperfeiçoarem.
269. O Espírito pode enganar-se, quanto à eficácia da prova que escolher?
— Pode escolher uma que esteja acima de suas forças, e então sucumbe. Pode também escolher uma que não lhe dê proveito algum, como um gênero de vida ocioso e inútil. Mas, nesse caso, voltando ao mundo dos Espíritos, percebe que nada ganhou , e pede para recuperar o tempo perdido.
270. Ao que se devem as vocações de certas pessoas, e sua vontade de seguir uma carreira em vez de outra?
— Parece-me que podeis responder por vós mesmos a esta questão. Não é a conseqüência de tudo o que dissemos sobre a escolha das provas sobre o progresso realizado numa existência anterior?
271. Quando o Espírito estuda, na erraticidade, as condições em que poderá progredir, como julga poder fazê-lo se nascer entre canibais?
— Não são os Espíritos já adiantados que nascem entre os canibais, mas os Espíritos da mesma natureza dos canibais, ou que lhe são inferiores.
Sabemos que os nossos antropófagos não estão no último grau da escala, e que há mundos onde o embrutecimento e a ferocidade ultrapassam tudo que existe na Terra. Esses Espíritos são, portanto, ainda inferiores aos mais inferiores do nosso mundo, e vir para o meio dos nossos selvagens é para eles um progresso, como seria um progresso para os nossos antropófagos exercer entre nós uma profissão que os obrigasse a derramar sangue. Se eles não visam ao mais alto, é porque a sua inferioridade moral não lhes permite compreender um progresso mais completo. O Espírito não pode avançar senão gradualmente; não deve transpor de um salto a distância que separa a barbárie da civilização. E está nisso uma das necessidades da reencarnação, que se mostra verdadeiramente de acordo com a justiça de Deus. De outra maneira, em que se transformariam esses milhões de seres que morrem diariamente no último estado de degradação, se não tivessem meios de se elevar? Por que Deus os teria deserdado dos favores concedidos aos demais?
272. Os Espíritos procedentes de um mundo inferior à Terra, ou de um povo muito atrasado, como os canibais, poderiam nascer entre os povos civilizados?
— Sim, há os que se extraviam ao quererem subir muito alto, mas ficam deslocados entre vós, porque têm hábitos e instintos que se chocam com os vossos.
Esses seres nos dão o triste espetáculo da ferocidade em meio da civilização. Retornando para o meio dos canibais, isso não será um retrocesso, pois não farão mais do que retomar o seu lugar, e talvez ainda com proveito.
273. Um homem pertencente a uma raça civilizada poderia, por expiação, reencarnar-se numa raça selvagem?
— Sim, mas isso depende do gênero da expiação. Um senhor que tenha sido duro para os seus escravos poderá tornar-se escravo e sofrer os maus tratos que infligiu a outros. Aquele que mandou numa época, pode, em outra existência, obedecer aos que se curvaram ante a sua vontade. É uma expiação, se ele abusou do poder, e Deus pode determiná-la. Um bom Espírito pode, para o fazer avançar, escolher uma vida de influência entre esses povos. Então se trata de uma missão.
Livro: O Livro dos Espíritos – Allan Kardec.

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