Antigamente eu
escrevia nas sombras para os que se conservavam nas claridades da Vida.
Hoje, escrevo na
luz branca da espiritualidade para quantos ainda se acham mergulhados nas
sombras do mundo.
Quero crer,
porém que tão dura tarefa me foi imposta nas mansões da Morte, como esquisita
penitência ao meu bom gosto de homem que colheu quando pôde dos frutos
saborosos na árvore paradisíaca dos nossos primeiros pais, segundo as
Escrituras.
Contudo não
desejo imitar aquele velho Tirésias que à força de proferir alvitres e
sentenças conquistou dos deuses o dom divinatório em troca dos preciosos dons
da vista.
Por esta razão o
meu pensamento não se manifesta entre vocês que aqui acorreram para ouvi-lo
como o daquelas entidades batedoras, que em
Hydesville, na América do Norte, por
intermédio das irmãs Fox, viviam nos primórdios do Espiritismo, contando
histórias e dando respostas surpreendentes com as suas pancadas ruidosas e
alegres.
Devo também
esclarecer ao sentimento de curiosidade que os tangeu até aqui, que não estou
exercendo ilegalmente a medicina como a grande parte dos defuntos, os quais,
hoje em dia, vivem diagnosticando e receitando mezinhas e águas milagrosas para
os enfermos.
Nem tampouco, na
minha qualidade de repórter “falecido” sou portador de alguma mensagem
sensacional dos paredros comunistas que já se foram dessa vida para a melhor,
êmulos dos Lenine, dos Kropotkine, cujos cérebros, a esta hora, devem estar
transbordando teorias momentosas para o instante amargo que o mundo está
vivendo.
O objetivo das
minhas palavras póstumas é somente demonstrar o homem... Desencarnado e a
imortalidade dos seus atributos. O fato é que vocês não me viram.
Mas contem lá
fora eu enxergaram o médium. Não afirmam que ele se parece com o Mahatma Gandhi
em virtude de lhe faltar uma tanga, uma cabra e a experiência “anosa” do
“líder” nacionalista da Índia. Mas historiem, com sinceridade, o caso das suas roupas
remendadas e tristes de proletário e da sua pobreza limpa e honesta que anda
por esse mundo arrastando tamancos para a remissão de suas faltas nas
anteriores encarnações.
Quanto a mim,
digam que eu estava por detrás do véu de Ísis.
Mesmo assim, na
minha condição de intangibilidade, não me furto ao desejo de lhes contar algo a
respeito desta “outra vida” para onde todos têm de regressar. Se não estou nos
infernos de que fala a teologia dos cristãos, não me acho no sétimo paraíso de
Maomé. Não sei contar as minhas aperturas na amarga perspectiva de completo
abandono em que me encontrei, logo após abrir os meus olhos no reino
extravagante da Morte.
Afigurou-se-me
que eu ia, diretamente consignado ao Aqueronte, cujas águas amargosas deveria
transpor como as sombras para nunca mais voltar, porque não cheguei a
presenciar nenhuma luta entre São Gabriel e os Demônios, com as suas balanças
trágicas, pela posse de minha alma.
Passados, porém,
os primeiros instantes de “inusitado” receio, divisei a figura miúda e simples
do meu Tio Antoninho, que me recebeu nos seus braços carinhosos de santo.
Em companhia,
pois, de afeições ternas, no reconto fabuloso, que é a minha temporária morada,
ainda estou como aparvalhado entre todos os fenômenos da sobrevivência. Ainda
não cheguei a encontrar os sóis maravilhosos, as esferas, os mundos
comentários, portentos celestes, que descreve Flammarion na sua “Pluralidade
dos Mundos”. Para o meu espírito, a Lua ainda prossegue na sua carreira como
esfinge eterna do espaço, embuçada no seu burel de freira morta.
Uma saudade
doida e uma ânsia sem termo fazem um turbilhão no meu cérebro: é a vontade de
rever, no reino das sombras, o meu pai e a minha irmã. Ainda não pude fazê-lo.
Mas em um movimento de maravilhosa retrospecção pude volver à minha infância,
na Miritiba longínqua.
Revi as suas
velhas ruas, semi-arruinadas pelas águas do Piriá e pelas areias implacáveis...
Revi os dias que
se foram e senti novamente a alma expansiva de meu pai como um galho forte e
alegre do tronco robusto dos Veras à minha frente, nos quadros vivos da
memória, abracei a minha irmãzinha inesquecida, que era em nossa casa modesta
como um anjo pequenino da Assunção de Murilo, que se tivesse corporificado de uma
hora para outra sobre as lamas da terra...
Descansei à
sombra das árvores largas e fartas, escutando ainda as violas caboclas,
repenicando os sambas da gente das praias nortistas e que tão bem ficaram
arquivadas na poesia encantadora e simples de Juvenal
Galeno.
Da Miritiba
distante transportei-me à Parnaíba, onde vibrei com o meu grande mundo
liliputiano...
Em espírito,
contemplei com a minha mãe as folhas enseivadas do meu cajueiro derramando-se
na Terra entre as harmonias do canto choroso das rolas morenas dos recantos
distantes de minha terra.
De almas
entrelaçadas contemplei o vulto de marfim antigo daquela santa que, como um
anjo, espalmou muitas vezes sobre o meu espírito cansado as suas asas brancas.
Beijei-lhe as mãos encarquilhadas genuflexo e segurei as contas do seu rosário
e as contas miúdas e claras que corriam furtivamente dos seus olhos,
acompanhando a sua oração...
Ave Maria...
Cheia de graça... Santa Maria... Mãe de Deus...
Ah! De cada vez
que o meu olhar se espraia tristemente sobre a superfície do mundo, volvo a
minha alma aos firmamentos, tomada de espanto e de assombro...
Ainda há pouco,
nas minhas surpresas de recém-desencarnado, encontrei na existência dos
espaços, onde não se contam as horas, uma figura de velho, um espírito ancião,
em cujo coração milenário presumo refugiadas todas as experiências. Longas
barbas de neve, olhos transudando piedade infinita doçura, da sua fisionomia de
Doutor da Lei, nos tempos apostólicos, irradiava-se uma corrente de profunda
simpatia.
- Mestre! –
disse-lhe eu na falta de outro nome – que podemos fazer para melhorar a situação do orbe terreno? O
espetáculo do mundo me desola e espanta...
A família parece
se dissolve...
O lar está
balançando como os frutos podres, na iminência de cair...
A Civilização,
com os seus numerosos séculos de leis e instituições afigura-se haver tocado os
seus apogeus...
De um lado
existem os que se submergem num gozo aparente e fictício, e do outro estão às
multidões famintas, aos milhares, que não têm senão rasgado no peito o sinal da
cruz, desenhado por Deus com a suas mãos prestigiosas como os símbolos que
Constantino gravara nos seus estandartes...
E, sobretudo
Mestre, é a perspectiva horrorosa da guerra...
Não há tranqüilidade
e a Terra parece mais um fogareiro imenso, cheio de matérias em combustão...
Mas o bondoso
espírito-ancião me respondeu com humildade e brandura:
- Meu filho...
Esquece o mundo e deixa o homem guerrear em paz!...
Achei graça no
seu paradoxo, porém só me resta acrescentar:
- Deixem o mundo
em paz com a sua guerra e a sua indiferença!
Não será minha
boca quem vá soprar na trombeta de Josafá.
Cada um guarde
aí a sua crença ou o seu preconceito.
Recebida em
Pedro Leopoldo a 23 de abril de 1935.
Do Livro
Palavras do Infinito. Psicografia de Francisco Cândido Xavier.
Nenhum comentário:
Postar um comentário