Depois das
primeiras prédicas de Jesus, respeito aos trabalhos ingentes que a edificação
do Reino de Deus exigia dos seus discípulos, esboçou-se na fraterna comunidade
um leve movimento de incompreensão. Quê? Pois a Boa Nova reclamaria tamanhos
sacrifícios? Então o Senhor, que sondava o íntimo de seus companheiros diletos,
os reuniu, uma noite, quando a turba os deixara a sós e já algumas horas haviam
passado sobre o pôr do Sol.
Interrogando-os
vivamente, provocou a manifestação dos seus pensamentos e dúvidas mais íntimas.
Após escutar-lhes as confidências simples e sinceras, o Mestre ponderou:
— Na causa de
Deus, a fidelidade deve ser uma das primeiras virtudes. Onde o filho e o pai
que não desejam estabelecer, como ideal de união, a confiança integral e recíproca?
Nós não podemos duvidar da fidelidade do Nosso Pai para conosco. Sua dedicação
nos cerca os Espíritos, desde o primeiro dia. Ainda não o conhecíamos e já ele
nos amava. E, acaso, poderemos desdenhar a possibilidade da retribuição? Não
seria repudiarmos o título de filhos amorosos, o fato de nos deixarmos absorver
no afastamento, favorecendo a negação?
Como os
discípulos o escutassem atentos, bebendo-lhe os ensinos, o Mestre acrescentou:
— Tudo na vida
tem o preço que lhe corresponde. Se vacilais receosos ante as bênçãos do
sacrifício e as alegrias do trabalho, meditai nos tributos que a fidelidade ao
mundo exige. O prazer não costuma cobrar do homem um imposto alto e doloroso?
Quanto pagarão, em flagelações íntimas, o vaidoso e o avarento? Qual o preço
que o mundo reclama ao gozador e ao mentiroso?
Ao clarão
alvacento da Lua, como pai bondoso rodeado de seus filhinhos, Jesus reconheceu
que os discípulos, diante das suas cariciosas perguntas, haviam transformado a
atitude mental, como que iluminados por súbito clarão.
Timidamente,
Tiago, filho de Alfeu, contou a história de um amigo que arruinara a saúde, por
excessos nos prazeres condenáveis.
Tadeu falou de
um conhecido que, depois de ganhar grande fortuna, se havia tornado avarento e
mesquinho a ponto de privar-se do necessário, para multiplicar o número de suas
moedas, acabando assassinado pelos ladrões.
Pedro recordou o
caso de um pescador de sua intimidade, que sucumbira tragicamente, por efeito
de sua desmedida ambição.
Jesus, depois de
ouvi-los, satisfeito, perguntou:
— Não achais
enorme o tributo que o mundo exige dos que se apegam aos seus gozos e riquezas?
Se o mundo pede tanto, por que não poderia Deus pedir-nos lealdade ao coração?
Trabalhamos agora pela instituição divina do seu Reino na Terra; mas, desde
quando estará o Pai trabalhando por nós?
As
interrogativas pairavam no espaço sem resposta dos discípulos, porque, acima de
tudo, eles ouviam a que lhes dava o próprio coração. Do firmamento infinito os
reflexos do luar se projetavam no lençol tranquilo do lago, dando a impressão
de encantador caminho para o horizonte, aberto sobre as águas, por entre
deslumbramentos de luz.
Enquanto os
companheiros meditavam no que dissera Jesus, Tiago se lhe dirigiu, nestes
termos:
— Mestre, tenho
um amigo, de Corazim, que vos ouviu a palavra santificante e desejava
seguir-vos; porém, asseverou-me que o Reino pregado pela vossa bondade está
cheio de numerosos obstáculos, acrescentando que Deus deve mostrar-se a nós
outros somente na vitória e na ventura. Devo confessar que hesitei ante as suas
observações, mas, agora, esclarecido pelos vossos ensinamentos, melhor vos
compreendo e afirmo-vos que nunca esquecerei minha fidelidade ao Reino!…
A voz do
apóstolo, na sua confissão espontânea, se revelava tocada de entusiasmo doce e
amigo e o Senhor, aproveitando a hora para a semeadura divina, exclamou,
bondoso:
— Tiago, nem
todos podem compreender a verdade de uma só vez. Devemos considerar que o mundo
está cheio de crentes que não entendem a proteção do Céu, senão nos dias de
tranquilidade e de triunfo. Nós, porém, que conhecemos a vontade suprema, temos
que lhe seguir o roteiro. Não devemos pensar no Deus que concede, mas no Pai
que educa; não no Deus que recompensa, sim no Pai que aperfeiçoa. Daí se segue
que a nossa batalha pela redenção tem de ser perseverante e sem tréguas…
Nesse ínterim,
todos os companheiros de apostolado, manifestando o interesse que os
esclarecimentos da noite lhes causavam, se puseram a perguntar, com respeito e
carinho:
— Mestre, —
exclamou um deles, — não seria melhor fugirmos do mundo para viver na
incessante contemplação do Reino?…
— Que diríamos
do filho que se conservasse em perpétuo repouso, junto de seu pai que trabalha
sem cessar, no labor da grande família? — Respondeu Jesus.
— Mas, de que
modo se há de viver como homem e como apóstolo do Reino de Deus na face deste
mundo? — Inquiriu Tadeu.
— Em verdade, —
esclareceu o Messias, — ninguém pode servir, simultaneamente, a dois senhores.
Fora absurdo viver ao mesmo tempo para os prazeres condenáveis da Terra e para
as virtudes sublimes do Céu. O discípulo da Boa Nova tem de servir a Deus,
servindo à sua obra neste mundo. Ele sabe que se acha a laborar com muito
esforço num grande campo, propriedade de seu Pai, que o observa com carinho e
atenta com amor nos seus trabalhos. Imaginemos que esse campo estivesse cheio
de inimigos: por toda parte, vermes asquerosos, víboras peçonhentas, tratos de
terra improdutiva. É certo que as forças destruidoras reclamarão a indiferença
e a submissão do filho de Deus; mas, o filho de coração fiel a seu Pai se lança
ao trabalho com perseverança e boa vontade. Entrará em luta silenciosa com o
meio, sofrer-lhe-á os tormentos com heroísmo espiritual, por amor do Reino que
traz no coração plantará uma flor onde haja um espinho; abrirá uma senda,
embora estreita, onde estejam em confusão os parasitos da Terra; cavará
pacientemente, buscando as entranhas do solo, para que surja uma gota d’água
onde queime um deserto. Do íntimo desse trabalhador brotará sempre um cântico
de alegria, porque Deus o ama e segue com atenção.
— Qual a
primeira qualidade a cultivar no coração, — perguntou um dos filhos de Zebedeu,
— para que nos sintamos plenamente identificados com a grandeza espiritual da
tarefa?
— Acima de todas
as coisas, — respondeu o Mestre, — é preciso ser fiel a Deus.
A pequena
assembleia parecia altamente enlevada e satisfeita; mas, André inquiriu:
— Mestre, estes
últimos dias, tenho-me sentido doente e receio não poder trabalhar como os
demais companheiros. Como poderei ser fiel a Deus, estando enfermo?
— Ouvi, —
replicou o Senhor com certa ênfase. — Nos dias de calma, é fácil provar-se
fidelidade e confiança. Não se prova, porém, dedicação, verdadeiramente, senão
nas horas tormentosas, em que tudo parece contrariar e perecer. O enfermo tem
consigo diversas possibilidades de trabalhar para Nosso Pai, com mais altas
probabilidades de êxito no serviço. Tateando ou rastejando, busquemos servir ao
Pai que está nos Céus, porque nas suas mãos divinas vive o Universo inteiro!…
André, se algum
dia teus olhos se fecharem para a luz da Terra, serve a Deus com a tua palavra
e com os ouvidos; se ficares mudo, toma, assim mesmo, a charrua, valendo-te das
tuas mãos. Ainda que ficasses privado dos olhos e da palavra, das mãos e dos
pés, poderias servir a Deus com a paciência e a coragem, porque a virtude é o
verbo dessa fidelidade que nos conduzirá ao amor dos amores!
O grupo dos
apóstolos calara-se, impressionado, ante aquelas recomendações. O luar
esplendia sobre as águas silenciosas. O mais leve ruído não traía o silêncio
augusto da hora.
André chorava de
emoção, enquanto os outros observavam a figura do Cristo, iluminada pelos
clarões da lua, deixando entrever um amoroso sorriso. Então, todos,
impulsionados por soberana força interior, disseram, quase a um só tempo:
— Senhor,
seremos fiéis!…
Jesus continuou
a sorrir, como quem sabia a intensidade da luta a ser travada e conhecia a
fragilidade das promessas humanas. Entretanto, do coração dos apóstolos jamais
se apagou a lembrança daquela noite luminosa de Cafarnaum, aureolada pelo
ensinamento divino. Humilhados e perseguidos, crucificados na dor e esfolados
vivos, souberam ser fiéis, através de todas as vicissitudes da Natureza, e,
transformando suas angústias e seus trabalhos num cântico de glorificação, sob
a eterna inspiração do Mestre, renovaram a face do mundo.
Humberto de
Campos (Irmão X) / Chico Xavier.
Livro: Boa Nova.
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