1 - Maria de Magdala ouvira as pregações do
Evangelho do Reino, não longe da Vila principesca onde vivia à conta de
prazeres, em companhia de patrícios romanos, e tomara-se de admiração profunda
pelo Messias. Que novo amor era aquele, apregoado aos pescadores singelos pelos
seus lábios divinos?
2 - Até ali,
caminhara sobre as rosas rubras do desejo, embriagando-se com o vinho de
condenáveis alegrias. Contudo, seu coração estava sequioso e em desalento. Era
jovem e formosa, emancipara-se dos preconceitos férreos de sua raça; sua beleza
lhe escravizara aos caprichos de mulher os mais ardentes admiradores; mas, seu
espírito tinha fome de amor.
3- O profeta nazareno havia plantado em sua alma
novos pensamentos. Depois que lhe ouvira a palavra, observou que as facilidades
da vida lhe traziam agora um tédio mortal ao espírito sensível. As músicas
voluptuosas não lhe encontravam eco no íntimo, os enfeites romanos de sua
habitação se tornaram áridos e tristes. Maria chorou longamente, embora não
compreendesse ainda o que pleiteava o profeta desconhecido; entretanto, seu
convite amoroso parecia ressoar-lhe nas fibras mais sensíveis de mulher. Jesus
chamava os homens para uma vida nova.
4 - Decorrida uma noite de grandes meditações e
antes do famoso banquete em Naim, ( † ) onde ela ungiria publicamente os pés de
Jesus com os bálsamos perfumados de seu afeto, notou-se que uma barca tranquila
conduzia a pecadora a Cafarnaum. Dispusera-se a procurar o Messias, após muitas
hesitações. Como a receberia o Senhor, na residência de Simão? Seus
conterrâneos nunca lhe haviam perdoado o abandono do lar e a vida de aventuras.
Para todos, era ela a mulher perdida que teria de encontrar a lapidação na
praça pública.
5 - Sua
consciência, porém, lhe pedia que fosse. Jesus tratava a multidão com especial
carinho. Jamais lhe observara qualquer expressão de desprezo para com as numerosas
mulheres de vida equívoca que o cercavam. Além disso, sentia-se seduzida pela
sua generosidade. Se possível, desejaria trabalhar na execução de suas ideias
puras e redentoras. Propunha-se a amar, como Jesus amava, sentir com os seus
sentimentos sublimes. Se necessário, saberia renunciar a tudo. Que lhe valiam
as joias, as flores raras, os banquetes suntuosos, se, ao fim de tudo isso,
conservava a sua sede de amor?!…
6 - Envolvida
por esses pensamentos profundos, Maria de Magdala penetrou o umbral da humilde
residência de Simão Pedro, onde Jesus parecia esperá-la, tal a bondade com que
a recebeu num grande sorriso. A recém-chegada sentou-se com indefinível emoção
a estrangular-lhe o peito.
7 - Vencendo,
contudo, as suas mais fortes impressões, assim falou, em voz súplice, feitas as
primeiras saudações:
— Senhor, ouvi a
vossa palavra consoladora e venho ao vosso encontro!… Tendes a clarividência do
Céu e podeis adivinhar como tenho vivido! Sou uma filha do pecado. Todos me
condenam. Entretanto, Mestre, observai como tenho sede do verdadeiro amor!…
Minha existência, com todos os prazeres, tem sido estéril e amargurada…
8 - As primeiras
lágrimas lhe borbulharam dos olhos, enquanto Jesus a contemplava, com bondade
infinita. Ela, porém, continuou:
— Ouvi o vosso
amoroso convite ao Evangelho! Desejava ser das vossas ovelhas; mas, será que
Deus me aceitaria?
9 - O Profeta
nazareno fitou-a, enternecido, sondando as profundezas de seu pensamento, e
respondeu, bondoso:
— Maria, levanta
os olhos para o céu e regozija-te no caminho, porque escutaste a Boa Nova do
Reino e Deus te abençoa as alegrias! Acaso, poderias pensar que alguém no mundo
estivesse condenado ao pecado eterno? Onde, então, o amor de Nosso Pai? Nunca
viste a primavera dar flores sobre uma casa em ruínas? As ruínas são as
criaturas humanas; porém, as flores são as esperanças em Deus. Sobre todas as
falências e desventuras próprias do homem, as bênçãos paternais de Deus descem
e chamam. Sentes hoje esse novo Sol a iluminar-te o destino! Caminha agora, sob
a sua luz, porque o amor cobre a multidão dos pecados. ( † )
10 - A pecadora
de Magdala escutava o Mestre, bebendo-lhe as palavras. Homem algum havia falado
assim à sua alma incompreendida. Os mais levianos lhe pervertiam as boas
inclinações, os aparentemente virtuosos a desprezavam sem piedade. Engolfada em
pensamentos confortadores e ouvindo as referências de Jesus ao amor, Maria
acentuou, levemente:
— No entanto,
Senhor, tenho amado e tenho sede de amor!…
— Sim, —
redarguiu Jesus, — tua sede é real.
11 - O mundo viciou todas as fontes de redenção, e
é imprescindível compreenda que, em suas sendas, a virtude tem de marchar por
uma estrada difícil, e demandar o Reino através de uma porta muito estreita. (
† ) Geralmente, um homem deseja ser bom como os outros, ou honesto como os
demais, olvidando que o caminho onde todos passam é de fácil acesso e de marcha
sem edificações. A virtude no mundo foi transformada na porta larga da
conveniência própria.
12 - Há os que
amam os que lhes pertencem ao círculo pessoal, os que são sinceros com os seus
amigos, os que defendem seus familiares, os que adoram os deuses do favor. O
que verdadeiramente ama, porém, conhece a renúncia suprema a todos os bens do
mundo e vive feliz, na sua senda de trabalhos para o difícil acesso às luzes da
redenção. O amor sincero não exige satisfações passageiras, que se extinguem no
mundo com a primeira ilusão; trabalha sempre, sem amargura e sem ambições, com
os júbilos do sacrifício. Só o amor que renuncia sabe caminhar para a vida
suprema!…
13 - Maria o
escutava, embevecida. Ansiosa por compreender inteiramente aqueles ensinos
novos, interrogou atenciosamente:
— Só o amor pelo
sacrifício poderá saciar a sede do coração?
Jesus teve um gesto afirmativo e
continuou:
— Somente o
sacrifício contém o divino mistério da vida. Viver bem é saber imolar-se.
14 - Acreditas
que o mundo pudesse manter o equilíbrio próprio tão só com os caprichos
antagônicos e por vezes criminosos dos que se elevam à galeria dos
triunfadores? Toda luz humana vem do coração experiente e brando dos que foram
sacrificados. Um guerreiro coberto de louros ergue os seus gritos de vitória
sobre os cadáveres que juncam o chão; mas, apenas os que tombaram fazem
bastante silêncio, para que se ouça no mundo a mensagem de Deus. O primeiro
pode fazer a experiência para um dia; os segundos constroem a estrada
definitiva na eternidade.
15 - Na tua
condição de mulher, já pensaste no que seria o mundo sem as mães exterminadas
no silêncio e no sacrifício? Não são elas as cultivadoras do jardim da vida,
onde os homens travam a batalha?!… Muitas vezes, o campo enflorescido se cobre
de lama e sangue; mas, na sua tarefa silenciosa, os corações maternais não
desesperam e reedificam o jardim da vida, imitando a Providência Divina, que
espalha sobre um cemitério os lírios perfumados de seu amor!…
16 - Maria de
Magdala, ouvindo aquelas advertências, começou a chorar, a sentir no íntimo o
deserto da mulher sem filhos. Por fim, exclamou:
— Desgraçada de
mim, Senhor, que não poderei ser mãe!…
Então, atraindo-a brandamente a si, o
Mestre acrescentou:
— E qual das
mães será maior aos olhos de Deus? A que se devotou somente aos filhos de sua
carne, ou a que se consagrou, pelo espírito, aos filhos das outras mães?
17 - Aquela
interrogação pareceu despertá-la para meditações mais profundas. Maria
sentiu-se amparada por uma energia interior diferente, que até então
desconhecera. A palavra de Jesus lhe honrava o espírito; convidava-a a ser mãe
de seus irmãos em humanidade, aquinhoando-os com os bens supremos das mais
elevadas virtudes da vida. Experimentando radiosa felicidade em seu mundo
íntimo, contemplou o Messias com os olhos nevoados de lágrimas e, no êxtase de
sua imensa alegria, murmurou comovidamente:
— Senhor, doravante
renunciarei a todos os prazeres transitórios do mundo, para adquirir o amor
divino que me ensinastes!… Acolherei como filhas as minhas irmãs no sofrimento,
procurarei os infortunados para aliviar-lhes as feridas do coração, estarei com
os aleijados e leprosos…
18 - Nesse
instante, Simão Pedro passou pelo aposento, demandando o interior, e a observou
com certa estranheza. A convertida de Magdala lhe sentiu o olhar glacial, quase
denotando desprezo, e, já receosa de um dia perder a convivência do Mestre,
perguntou com interesse:
— Senhor, quando
partirdes deste mundo, como ficaremos?
19 - Jesus
compreendeu o motivo e o alcance de sua palavra e esclareceu:
— Certamente que partirei, mas estaremos eternamente reunidos em espírito. Quanto ao futuro, com o infinito de suas perspectivas, é necessário que cada um tome sua cruz, em busca da porta estreita da redenção, colocando acima de tudo a fidelidade a Deus e, em segundo lugar, a perfeita confiança em si mesmo.
20 - Observando
que Maria, ainda opressa pelo olhar estranho de Simão Pedro, se preparava a
regressar, o Mestre lhe sorriu com bondade e disse:
— Vai, Maria!…
Sacrifica-te e ama sempre. Longo é o caminho, difícil a jornada, estreita a
porta; mas, a fé remove os obstáculos… Nada temas: é preciso crer somente! ( †
)
21 - Mais tarde,
depois de sua gloriosa visão do Cristo ressuscitado, ( †) Maria de Magdala
voltou de Jerusalém para a Galileia, seguindo os passos dos companheiros
queridos.
A mensagem da
ressurreição espalhara uma alegria infinita.
22 - Após algum
tempo, quando os apóstolos e seguidores do Messias procuravam reviver o passado
junto ao Tiberíades, † os discípulos diretos do Senhor abandonaram a
região, a serviço da Boa Nova. Ao disporem-se os dois últimos companheiros a
partir em definitivo para Jerusalém, Maria de Magdala, temendo a solidão da
saudade, rogou fervorosamente lhe permitissem acompanhá-los à cidade dos
profetas; ambos, no entanto, se negaram a anuir aos seus desejos. Temiam-lhe o
pretérito de pecadora, não confiavam em seu coração de mulher. Maria
compreendeu, mas lembrou-se do Mestre e resignou-se.
23 - Humilde e
sozinha, resistiu a todas as propostas condenáveis que a solicitavam para uma
nova queda de sentimentos. Sem recursos para viver, trabalhou pela própria
manutenção, em Magdala † e Dalmanuta.
† Foi forte nas horas mais
ásperas, alegre nos sofrimentos mais escabrosos, fiel a Deus nos instantes
escuros e pungentes. De vez em quando, ia às sinagogas, desejosa de cultivar a
lição de Jesus; mas as aldeias da Galileia
† estavam novamente subjugadas
pela intransigência do judaísmo. Ela compreendeu que palmilhava agora o caminho
estreito, onde ia só, com a sua confiança em Jesus. Por vezes, chorava de
saudade, quando passeava no silêncio da praia, recordando a presença do Messias.
As aves do lago, ao crepúsculo, vinham pousar, como outrora, nas alcaparreiras
mais próximas; o horizonte oferecia, como sempre, o seu banquete de luz. Ela
contemplava as ondas mansas e lhes confiava suas meditações.
24 - Certo dia,
um grupo de leprosos veio a Dalmanuta. Procediam da Idumeia †
aqueles infelizes, cansados e tristes, em supremo abandono. Perguntavam
por Jesus Nazareno, mas todas as portas se lhes fechavam. Maria foi ter com
eles e, sentindo-se isolada, com amplo direito de empregar a sua liberdade,
reuniu-os sob as árvores da praia e lhes transmitiu as palavras de Jesus,
enchendo-lhes os corações das claridades do Evangelho. As autoridades locais,
entretanto, ordenaram a expulsão imediata dos enfermos.
25 - A grande
convertida percebeu tamanha alegria no semblante dos infortunados, em face de
suas fraternas revelações, com respeito às promessas do Senhor, que se pôs em
marcha para Jerusalém, na companhia deles. Todo o grupo passou a noite ao
relento, mas sentia-se que os júbilos do Reino de Deus agora os dominavam.
Todos se interessavam pelas descrições de Maria, devoravam-lhe as exortações,
contagiados de sua alegria e de sua fé. Chegados à cidade, foram conduzidos ao
vale dos leprosos, que ficava distante, onde a Madalena penetrou com
espontaneidade de coração. Seu espírito recordava as lições do Messias e uma
coragem indefinível se assenhoreara de sua alma.
26 - Dali em
diante, todas as tardes, a mensageira do Evangelho reunia a turba de seus novos
amigos e lhes dizia o ensinamento de Jesus. Rostos ulcerados enchiam-se de
alegria, olhos sombrios e tristes tocavam-se de nova luz. Maria lhes explicava
que Jesus havia exemplificado o bem até à morte, ensinando que todos os seus
discípulos deviam ter bom ânimo para vencer o mundo. Os agonizantes
arrastavam-se até junto dela e lhe beijavam a túnica singela. A filha de
Magdala, lembrando o amor do Mestre, tomava-os em seus braços fraternos e
carinhosos.
27 - Em breve
tempo, sua epiderme apresentava, igualmente, manchas violáceas e tristes. Ela
compreendeu a sua nova situação e recordou a recomendação do Messias de que
somente sabiam viver os que sabiam imolar-se. E experimentou grande gozo, por
haver levado aos seus companheiros de dor uma migalha de esperança. Desde a sua
chegada, em todo o vale se falava daquele Reino de Deus que a criatura devia
edificar no próprio coração. Os moribundos esperavam a morte com um sorriso
ditoso nos lábios, os que a lepra deformara ou abatera guardavam bom ânimo nas
fibras mais sensíveis.
28 - Sentindo-se
ao termo de sua tarefa meritória, Maria de Magdala desejou rever antigas
afeições de seu círculo pessoal, que se encontravam em Éfeso. † Lá
estavam João e Maria, além de outros companheiros dos júbilos cristãos.
Adivinhava que as suas últimas dores terrestres vinham muito próximas; todavia,
deliberou por em prática o seu humilde desejo.
29 - Nas
despedidas, seus companheiros de infortúnio material vinham suplicar-lhe os
derradeiros conselhos e recordações. Envolvendo-os no seu carinho, a emissária
do Evangelho lhes dizia apenas:
— Jesus deseja intensamente que nos amemos uns aos outros e que participemos de suas divinas esperanças, na mais extrema lealdade a Deus!…
30 - Dentre
aqueles doentes, os que ainda se equilibravam pelos caminhos lhe traziam o
fruto das esmolas escassas, as crianças abandonadas vinham beijar-lhe as mãos.
Na fortaleza de
sua fé, a ex-pecadora abandonou o vale, afastando-se de suas choupanas
misérrimas, através das estradas ásperas. A peregrinação foi-lhe difícil e
angustiosa. Para satisfazer aos seus intentos recorreu à caridade, sofreu
penosas humilhações, submeteu-se ao sacrifício. Observando as feridas
pustulentas que substituíam sua antiga beleza, alegrava-se em reconhecer que
seu espírito não tinha motivos para lamentações. Jesus a esperava e sua alma
era fiel.
31 - Realizada a sua aspiração, por entre
dificuldades infinitas, Maria achou-se, um dia, às portas da cidade; mas,
invencível abatimento lhe dominava os centros de força física. No justo momento
de suas efusões afetuosas, quando o casario de Éfeso se lhe desdobrava à vista,
seu corpo alquebrado negou-se a caminhar. Uma modesta família de cristãos do
subúrbio recolheu-a à uma tenda humilde, por caridade. A Madalena pôde ainda
rever amizades bem caras, consoante seus desejos. Entretanto, por largos dias
de padecimento, debateu-se entre a vida e a morte.
32 - Uma noite,
atingiram o auge as profundas dores que sentia. Sua alma estava iluminada por
brandas reminiscências e, não obstante seus olhos se acharem selados pelas
pálpebras intumescidas, via com os olhos da imaginação o lago querido, os
companheiros de fé, o Mestre bem-amado. Seu espírito parecia transpor as
fronteiras da eternidade radiosa. De minuto a minuto, ouvia-se-lhe um gemido
surdo, enquanto os irmãos de crença lhe rodeavam o leito de dor, com as preces
sinceras de seus corações amigos e desvelados.
33 - Em dado
instante, observou-se que seu peito não mais arfava. Maria, no entanto,
experimentava consoladora sensação de alívio. Sentia-se sob as árvores de
Cafarnaum e esperava o Messias. As aves cantavam nos ramos próximos e as ondas
sussurrantes vinham beijar-lhe os pés. Foi quando viu Jesus aproximar-se, mais
belo do que nunca. Seu olhar tinha o reflexo do céu e no semblante trazia um
júbilo indefinível. O Mestre estendeu-lhe as mãos e ela se prosternou,
exclamando, como antigamente:
— Senhor!…
Jesus
recolheu-a, brandamente, nos braços e murmurou:
— Maria, já
passaste a porta estreita!… Amaste muito! Vem! Eu te espero aqui!
Humberto de
Campos (Irmão X) / Chico Xavier.
Livro: Boa Nova.
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