Quando o
cavaleiro D'Arsonval, valoroso senhor em França, se ausentou do medievo domicílio,
pela primeira vez, de armadura fulgindo ao Sol, dirigia-se à Itália para solver
urgente questão política.
Eminente
cristão, trazia consigo um propósito central - servir ao Senhor, fielmente,
para encontrá-lo.
Não longe de
suas portas, viu surgir, de inesperado, ulceroso mendigo a estender-lhe as mãos
descarnadas e súplices.
Quem seria
semelhante infeliz a vaguear sem rumo?
Preocupava-o
serviço importante, em demasia, e, sem se dignar fixá-lo, atirou-lhe a bolsa
farta.
O nobre
cavaleiro tornou ao lar e, mais tarde, menos afortunado nos negócios, deixou,
de novo, a casa.
Demandava a
Espanha, em missão de prelados amigos, aos quais se devotara.
No mesmo lugar,
postava-se, o infortunado pedinte, com os braços em rogativa.
O fidalgo,
intrigado, revolveu grande saco de viagem e dele retirou pequeno brilhante, arremessando-o
ao triste caminheiro que parecia devorá-lo com o olhar.
Não se passou
muito tempo e o castelão, menos feliz no círculo das finanças, necessitou viajar
para a Inglaterra, onde pretendia solucionar vários problemas, alusivos à
organização doméstica.
No mesmo trato
de solo, é surpreendido pelo amargurado leproso, cuja velha petição se ergue no
ar.
O cavaleiro
arranca do chapéu estimada jóia de subido valor e projeta-a sobre o conhecido
romeiro, orgulhosamente.
Decorridos
alguns meses, o patrão feudal se movimenta na direção de porto distante, em busca
de precioso empréstimo, destinado à própria economia, ameaçada de colapso
fatal, e, no mesmo sitio, com rigorosa precisão, é interpelado pelo mendigo,
cujas mãos, em chaga aberta, se voltam ansiosas para ele. D'Arsonval,
extremamente dedicado à caridade, não hesita. Despe fino manto e entrega-o, de
longe, receando-lhe o contacto.
Depois de um
ano, premido por questões de imediato interesse, vai a Paris invocar o socorro de
autoridades e, sem qualquer alteração, é defrontado pelo mesmo Lázaro, de
feição dolorida, que lhe repete a antiga súplica.
O Castelão
atira-lhe um gorro de alto preço, sem qualquer pausa no galope, em que seguia,
presto.
Sucedem-se os
dias e o nobre senhor, num ato de fé, abandona a respeitada residência, com
séqüito festivo.
Representará os
seus, junto à expedição de Godofredo de Bonillon, na cruzada com que se pretende
libertar os Lugares Santos.
No mesmo ângulo
da estrada, era aguardado pelo mendigo, que lhe reitera a solicitação em voz
mais triste.
O ilustre viajor
dá-lhe, então, rico farnel, sem oferecer-lhe a mínima atenção.
E, na Palestina,
D'Arsonval combateu valorosamente, caindo, ferido, em poder dos adversários.
Torturado,
combalido e separado de seus compatriotas, por anos a fio, padeceu miséria e vexame,
ataques e humilhações, até que, um dia, homem convertido em fantasma, torna ao
lar que não o reconhece.
Propalada a
falsa notícia de sua morte, a esposa deu-se pressa em substituí-lo, à frente da
casa, e seus filhos, revoltados, soltaram cães agressivos que o dilaceraram,
cruelmente, sem comiseração para com o pranto que lhe escorria dos olhos
semimortos.
Procurando
velhas afeições, sofreu repugnância e sarcasmo.
Interpretado,
agora, à conta de louco, o ex-fidalgo, em sombrio crepúsculo, ausentou-se, em definitivo,
a passos vacilantes...
Seguir para
onde? O mundo era pequeno demais para conter-lhe a dor.
Avançava,
penosamente, quando encontrou o mendigo.
Relembrou a
passada grandeza e atentou para ai mesmo, qual se buscasse alguma coisa para
dar.
Contemplou o
infeliz pela primeira vez e, cruzando com ele o olhar angustiado, sentiu que aquele
homem, chagado e sozinho, devia ser seu irmão. Abriu os braços e caminhou para
ele, tocado de simpatia, como se quisesse dar-lhe o calor do próprio sangue.
Foi, então, que, recolhido no regaço do companheiro que considerava leproso, dele
ouviu as sublimes palavras:
- D'Arsonval,
vem a mim! Eu sou Jesus, teu amigo. Quem me procura no serviço ao próximo, mais
cedo me encontra... Enquanto me buscava à distância, eu te aguardava, aqui tão
perto!
Agradeço o ouro,
as jóias, o manto, o agasalho e o pão que me deste, más há muitos anos te estendia
os meus braços, esperando o teu próprio coração!..
O antigo
cavaleiro nada mais viu senão vasta senda de luz, entre a Terra e o Céu... Mas,
no outro dia, quando os semeadores regressavam às lides do campo, sob a
claridade da aurora, tropeçaram no orvalhado caminho com um cadáver. D'Arsonval
estava morto.
Livro: Contos e
Apólogos.
Irmão X / Chico
Xavier.
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