Qual acontece entre os homens, no Mundo
Espiritual que os rodeia, sofrimento e expectação esmerilam a alma,
disciplinando, aperfeiçoando, reconstruindo...
Enquanto envergamos a veste física,
habitualmente imaginamos o paraíso das religiões encravado para lá da morte.
Sonhamos o apaziguamento integral dos sentidos, o acesso à alegria inefável que
anestesie toda lembrança convertida em chaga mental. No entanto, atravessada a
fronteira de cinza, eis-nos erguidos à responsabilidade inevitável, ante o
reencontro da própria consciência.
Uma vida humana, a continuar-se naturalmente
no Além, assume, assim, a forma de partida, em dois tempos distintos. Diferem
campos e vestimentas; entretanto, a luta da personalidade, de um renascimento a
outro na Terra, afigura-se laborioso prélio em duas fases. Anverso e reverso da
experiência. O berço inicia, O túmulo desdobra. Com raríssimas exceções na
regra, somente a reencarnação consegue transfigurar-nos de modo fundamental.
Deixamos no esquife o casulo mirrado e
transportamos conosco, na mesma ficha de identificação pessoal, para outras
esferas, os ingredientes espirituais que cultivamos e atraímos.
Inteligências em evolução na eternidade do
espaço e do tempo, os Espíritos domiciliados na Moradia Terrestre, em
abandonando o invólucro de matéria mais densa, assemelham-se, figuradamente,
aos insetos. Larvas existem que se retiram do ovo e revelam-se na condição de
parasitas, enquanto que outras se transformam, de imediato, em fale-nas de
prodigiosa beleza, ganhando altura.
Encontramos
criaturas que se afastam do estojo carnal, entrando em largos processos
obsessivos, nos quais se movimentam à custa de forças alheias, ao lado de
outras que, de pronto, se elevam, aprimoradas e belas, a planos superiores da evolução.
E entre as que se agarram profundamente às sensações da natureza física e as
que conquistam a sublime ascensão para estágios edificantes, no Grande Além,
surge a gama infinita das posições em que se graduam.
Emergindo
na Espiritualidade, após a desencarnação, sofremos, a princípio, o desencanto
de todos os que esperavam pelo céu teológico, fácil de granjear.
A
verdade aparece por alavanca renovadora. Padecendo ainda espessa amnésia,
relativamente ao passado remoto, que descansa nos porões da memória, somos
então defrontados por velhos preconceitos que se nos entrechocam no íntimo,
tombando despedaçados. Suspiramos pela inércia que não existe. Exigimos resposta
afirmativa aos absurdos da fé convencionalista e dogmática que reclama a integração
com Deus para si só, excluindo, pretensiosamente, da Paternidade Divina, os que
não lhe comunguem a visão acanhada.
De
semelhantes conflitos, por vezes terríveis e extenuantes, nos recessos da mente,
muitos de nós saímos abatidos ou revoltados para extensas incursões no vampirismo
ou no desespero; a maior parte dos desencarnados, porém, a pouco e pouco se
acomoda às circunstâncias, aceitando a continuidade do trabalho na reeducação
própria, com os resultados da existência aparentemente encerrada no mundo, à
espera da reencarnação que possibilite renovação e recomeço...
Essas
ponderações afogueavam-me o pensamento, reparando a tristeza e o cansaço do meu
amigo Pedro Neves, devotado servidor do Ministério do Auxílio. (1)
Partilhando
expedições arrojadas e valorosas em atividade benemérita, ainda não lhe víramos
hesitações quaisquer. Veterano de empreendimentos socorristas, jamais
entremostrara desânimo ou fraqueza, por mais opressivo se lhe evidenciasse o
peso de compromissos e obrigações.
Advogado
que fora, na existência última, caracterizava-se por extrema lucidez, no exame
dos problemas que as eventualidades do caminho apresentassem.
Sempre
denodado e humilde; agora, porém, enunciava sensíveis alterações de comportamento.
Soubera-o
com breves encargos, na esfera física, para atender, de modo mais direto, a
necessidades de ordem familiar, cuja extensão e natureza não me houvera sido
possível perceber.
Desde
então, mostrava-se arredio e desencantado, copiando o feitio de companheiros
recém-chegados da Terra. Isolava-se em funda reflexão. Fugia à conversação
fraterna. Queixava-se disso ou daquilo. E vez por outra, em serviço, denotava
lágrimas que não chegavam a cair.
Ninguém
ousava sondar-lhe o sofrimento, tal a fibra moral em que se lhe exprimiam as
atitudes.
Provocando,
porém, algumas horas de desafogo, num banco de jardim, busquei habilmente
lançá-lo à extroversão, alegando dificuldades que me preocupavam.
Referi-me
aos descendentes que deixara no mundo e às inquietações que me causavam.
Pressentia-lhe
na tristeza a presença de lutas domésticas a lhe torturarem a alma, quais
ulcerações em recidiva, e não me enganei.
O
amigo absorveu a isca afetiva e desenovelou os sentimentos.
A
principio, falou vagamente das apreensões que lhe assomavam ao espírito agoniado.
Aspirava a esquecer, alhear-se; no entanto... a retaguarda familiar no mundo
lhe infligia dolorosas reminiscências difíceis de extirpar.
—
É a esposa quem o aflige, assim tanto?
—
Aventurei, procurando localizar o carnicão da mágoa que lhe abria as comportas
do pranto silencioso.
Pedro
fitou-me com a postura dolorida de um cão batido e respondeu:
—
Há momentos, André, nos quais será preciso biografar-nos, ainda que
superficialmente,
para vascolejar o pretérito e extrair dele a verdade, somente a verdade...
Meditou,
algo sufocado por instantes, e prosseguiu:
—
Não sou homem que me deixe governar por sentimentalismos, embora aprecie as
emoções pelo justo valor. Além disso, a experiência, desde muito, me ensinou a
raciocinar. Há quarenta anos, moro aqui e, há quase quarenta anos, a esposa
compeliu-me a absoluto desinteresse do coração. Deixei-a quando a mocidade das
energias físicas lhe estuava no sangue, e Enedina, compreensivelmente, não pôde
sustentar-se a distância das exigências femininas.
E
prosseguiu esclarecendo que ela se associara a outro homem, num segundo casamento,
entregando-lhe seus três filhos por enteados. Esse novo marido, entretanto,
arredou-a completamente de sua convivência espiritual. Homem ambicioso,
senhoreou os cabedais que ele ajuntara, logrando multiplicá-los imensamente, à
força de astúcia em arrojadas empresas comerciais. E agiu com tanta leviandade
que a esposa, dantes simples, se apaixonou pelas comodidades demasiadas,
gastando o tempo terrestre em prodigalidades e tafulices, até que se rojou às
derradeiras viciações nos desvarios do sexo. Observando o esposo em aventuras
galantes, de modo permanente, na posição de cavalheiro rico e desocupado, quis
desforrar-se, estabelecendo para si mesma desordenado culto ao prazer, mal
sabendo que apenas se transviava, em lamentáveis desequilíbrios.
—
E meus dois filhos, Jorge e Ernesto, ludibriados pelo fascínio do ouro com que
o padrasto lhes comprava a subserviência, enlouqueceram no mesmo delírio do dinheiro
fácil e se animalizaram a tal ponto que nem de leve guardam qualquer traço de
minha memória, não obstante serem atualmente negociantes abastados, em idade
madura...
—
A esposa, no entanto, ainda se encontra no mundo físico? — arrisquei, cortando
a pausa longa, para que a explicação não esmorecesse.
—
Minha pobre Enedina voltou, há dez anos, abandonando o corpo pela imposição da
icterícia, que lhe apareceu por verdugo invisível, evocado pelas bebidas
alcoólicas. Fitando-a, edemaciada, vencida, ensaiei alarmado todos os processos
de socorro à minha disposição...
Atemorizava-me
a perspectiva de vê-la escravizada às forças aviltantes a que se jungira sem
perceber; ansiava retê-la no corpo de carne, como quem resguarda uma criança
inconsciente em disfarçado refúgio. Entretanto, ai de mim! Colhida por entidades
infelizes, às quais se consorciou levianamente, em vão procurei estenderlhe
algum consolo, porqüanto ela mesma, depois de desencarnada, se compraz na viciação,
tentando a fuga impossível de si própria. Não há outro recurso senão esperar,
esperar...
—
E os filhos?
—
Jorge e Ernesto, hipnotizados pela riqueza material, para mim fizeram-se inabordáveis.
Mentalmente,
não me registram a lembrança. Intentando captar-lhes cooperação e simpatia, o
padrasto chegou a insinuar que não seriam meus filhos e sim dele próprio,
através de união com minha esposa. ao tempo de minha experiência terrestre, o
que Enedina, infelizmente, não desmentiu...
O
companheiro esboçou um sorriso amarelo e considerou:
—
Imagine! Na carne, o medo é comum, àfrente dos desencarnados e, em meu caso,
fui eu quem se afastou do ambiente doméstico, sob sensações de insopitável horror...
Ainda assim, a bondade de Deus não me arrojou à solidão, em se tratando da
ternura familiar. Tenho uma filha de quem jamais me separei pelos laços do espírito...
Beatriz, que deixei na flor da meninice, suportou pacientemente as afrontas e
conservou-se fiel ao meu nome. Somos, assim, duas almas, na mesma faixa de
entendimento...
Pedro
enxugou os olhos e acrescentou:
—
Agora, com quase meio século de existência entre os homens, presa embora ao
carinho que consagra ao esposo e ao filho único, prepara-se Beatriz para o regresso...
Minha filha vem atravessando os derradeiros dias terrenos, com o corpo torturado
pelo câncer...
—
Mas, atormenta-se você por isso? A idéia do reencontro pacífico não será, antes,
motivo para alegrar-se?
—
E os problemas, meu amigo? Os problemas do grupo consangüíneo? Por muitos anos,
estive à margem de todas as tricas do navio familiar... Fizera-me ao oceano
largo da vida... Agora, por amor à filha inesquecível, sou compelido a topar, com
espírito de caridade, a irreflexão e o descaramento. Estou inapto, desambientado...
Desde que me postei à cabeceira da doente querida, vejo-me na condição do aluno
debilitado pela expectativa de erros constantes..
Dispunha-se
Neves a prosseguir, mas urgente chamado de serviço nos impeliu à separação e,
conquanto diligenciando acalmá-lo, despedi-me, sob o compromisso de irmanar-me
a ele, nas tarefas de assistência à enferma, de modo mais intenso, a partir do
dia seguinte.
(1)
Organização de “Nosso Lar”. — Nota do Autor
espiritual.
SEXO E DESTINO
FRANCISCO CÂNDIDO
XAVIER E WALDO VIEIRA
DITADO PELO ESPÍRITO
ANDRE LUIZ