Misericordioso é
aquele que tem coração para os míseros; aquele que compreende e ama os fracos,
os ignorantes, os doentes, todos os necessitados de corpo, mente e alma, e procura
aliviar-lhes os sofrimentos.
Verdade é que o
Cristianismo não é, simplesmente, a religião da ética ou caridade; ele é, essencialmente,
místico, na sua infinita verticalidade divina. mas, também, é certo que ninguém
chega a essas alturas místicas da direta experiência de Deus se não se exaurir
em caridades éticas para com seus semelhantes; e, depois de atingir as excelsitudes
da mística, nunca deixará de manifestar pelo “segundo mandamento” o “primeiro e
maior de todos os mandamentos”.
O homem
meramente profano é ruidosamente.
O homem místico
é silenciosamente solitário.
Mas o homem
plenamente crístico é dinamicamente solidário.
Essa solidariedade
dinâmica do homem cristificado não exclui, mas inclui a solidão espiritual do
místico. O homem crístico é, por dentro, unicamente de Deus, e, por fora, de
todas as criaturas de Deus.
Ninguém pode
ser, firme e fecundamente, solidário com os homens se não for, sólida e profundamente,
solitário em Deus. A fraternidade humana supõe a paternidade de Deus.
Os
misericordiosos receberão misericórdia, não da parte dos homens aos quais mostraram
misericórdia, mas por parte de Deus, em cujo divino amor está radicada a verdadeira
caridade humana e de cujo seio brota sem cessar.
Quanto mais o
homem dá, na horizontal, tanto mais recebe, na vertical. Existe uma lei cósmica
que produz infalívelmente o enriquecimento do homem que em si mantém, permanentemente,
uma atitude doadora, que está sempre disposto a dar do que tem e a dar o que é,
isto é, ajudar a seus semelhantes com os objetos que possui e com o amor do
próprio sujeito que ele é. Não basta “fazer o bem” (dar objetos) — é necessário
também “ser bom” (dar o sujeito). O Cristianismo não é uma religião meramen te
ética, que ensine a fazer o bem — mas é sobretudo, uma religião mística, que
exige que o homem seja bom. Fazer o bem é o cumprimento do segundo mandamento,
“amarás o teu próximo como a ti mesmo”; ser bom é a atitude do primeiro e maior
de todos os mandamentos, “amarás o senhor teu Deus de todo o teu coração, com
toda a tua alma, com toda a tua mente e com todas as tuas forças”.
Pode alguém
fazer o bem sem ser bom, porque esse ‘bem” é apenas um objeto — mas ninguém
pode ser bom sem fazer o bem, porque esse “ser bom” é o próprio sujeito, que,
como o próprio vocábulo diz, “subjaz” (jaz por debaixo) como causa a todos os
efeitos, que “o bjazem” (jazem defronte ou de fora). Não são os efeitos que
produzem a causa, mas é a causa que produz os efeitos; não são os objetos, o
“fazer bem”, que produzem o sujeito, o “ser bom”, mas sim vice-versa, o “ser
bom” produz o “fazer bem”. A mística produz a ética. Se a mística de alguém não
produz a ética, é porque não é real, mas apenas uma pseudomística.
Existe,
certamente, uma espécie de ética anterior à mística, e ela é até necessária para
preparar o caminho para este; mas essa ética pré-mística é sempre difícil,
dolorosa, sacrificial — e todos sabem por experiência que as coisas difíceis
não têm garantia de perpetuidade.
Somente a ética
post-mística, que brotou das fecundas profundezas da experiência de Deus, é que
é fácil e deleitosa, e tem sólida garantia de perpetuidade.
Por isso, os
misericordiosos que Jesus proclama bem-aventurados não são apenas pessoas
eticamente boas, fazedoras do bem — mas são pessoas misticamente perfeitas, experientes
de Deus, e, por isto, essencialmente boas.
Esses homens
essencialmente perfeitos pelo imediato contato com Deus são, também, existencialmente
bons pela solidariedade com todas as criaturas de Deus. Quem viveu misticamente
o Deus do mundo, vive eticamente com todo o mundo de Deus, porqüanto a profunda
vertical da mística produz necessariamente a vasta horizontal da ética — é esta
a grandiosa matemática cósmica da Verdade Libertadora.
“Conhecereis a
Verdade e a Verdade vos libertará.” Esses misericordiosos receberão misericórdia,
não dos homens, mas de Deus. A misericórdia que eles fazem a seus semelhantes
não é causa, mas condição para que recebam misericórdia de Deus, porque ninguém
pode merecer causalmente uma dádiva divina; tudo que é espiritual e divino é essencialmente
gratuito, é de graça, porque é graça; é, todavia, necessário que o homem crie dentro
de si o clima propício para que essa dádiva gratuita lhe possa ser concedida;
esse clima propício, ou essa receptividade, é que é a condição, que em hipótese
alguma é causa.
Quem espera
recompensa, pagamento, pelos benefícios que presta à humanidade é egoísta,
mercenário, ainda que essa recompensa consista apenas no desejo de reconhecimento
ou gratidão da parte de seus beneficiados. Esse desejo não deixa de ser egoísta
e mercenário e tolhe ao homem a “gloriosa liberdade dos filhos de Deus”,
tornando –o escravo e prisioneiro de uma prisão muito perigosa, porque
sumamente sutil e, aparentemente, justificada, como é o desejo de gratidão. O
beneficiado, é certo, tem a obrigação de ser grato, mas o benfeitor não tem o
direito de esperar gratidão. Com esse desejo, por mais secreto e bem camuflado,
ele inutilizaria a sua ação e tolheria a si mesmo a liberdade.
O homem crístico
está liberto de qualquer espírito mercenário; trabalha inteiramente de graça,
nem espera resultado algum externo de seus trabalhos. Trabalha por amor à sua
grande missão, pois sabe que é embaixador plenipotenciário de Deus aqui na
terra e em outros mundos. E é por isso, que ele trabalha com o máximo de
perfeição e alegria em tudo, tanto nas coisas grandes como nas coisas pequenas.
Nunca trabalha para ter público que o aplauda. Por isso, não o exaltam
louvores, nem o deprimem censuras; é indiferente a vivas e a vaias, a aplausos
e a apupos, a benquerenças e malquerenças, porque se libertou definitivamente
de todas as escravidões do homem profano, do “homem velho”, e se revestiu da
leve e luminosa vestimenta do “homem novo” liberto pela Verdade.
Esse homem vive
permanentemente na atmosfera serena e sorridente da “gloriosa liberdade dos
filhos de Deus”, cujo diploma crístico vem resumido nas seguintes palavras: “Quando
tiverdes feito tudo o que devíeis fazer, dizei: “Somos servos inúteis, cumprimos
apenas a nossa obrigação, nenhuma recompensa merecemos por isto”...
São estes os
misericordiosos que alcançarão misericórdia — esses bem-aventurados...
Livro: O Sermão da
Montanha.
Huberto Rohden
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