Esta bem-aventurança
visa, sobretudo, os insatisfeitos, os descontentes consigo mesmos, os que
sofrem o tormento do Infinito, a nostalgia d o Eterno, os que vivem ou agonizam
em uma estranha inquietude metafísica, os que crêem mais no muito que ignoram do
que no pouco que sabem.
Esta
bem-aventurança sobre a bendita “fome e sede” não será compreendida por aqueles
que estão quites e em dia consigo e com Deus, os que nunca experimentaram o que
quer dizer estar “sofrido de Deus”.
Por mais
estranho e paradoxal que pareça, o fato é que os que mais possuem a Deus mais o
procuram, e tanto mais dolorosamente o sofrem quanto mais deliciosamente o
gozam.
Na vida
presente, o homem espiritual é vítima da sua espiritualidade e mártir da sua
própria mística. É que toda a conquista no terreno espiritual sofre a sua
própria insuficiência, uma vez que a distância que medeia entre qualquer finito
e o infinito é sempre igual a infinito, e os que já percorreram boa parte do
caminho e adquiriram grande clarividência das coisas de Deus percebem mais
apuradamente esta verdade do que outros.
Mas este
sofrimento é uma doce amargura, uma “bem -aventurada fome e sede”.
* * *
Antes de tudo
convém esclarecer o que aqui se entende pela palavra “justiça”. Esta palavra,
toda vez que ocorre nas sagradas Escrituras, significa a relação ou atitude
justa e reta que o homem assume em face de Deus. Não se refere à justiça no
sentido jurídico, do plano horizontal, como é usada na vida social de cada dia.
Justiça é, pois, a compreensão intuitiva de Deus (a mística) e o seu natural
transbordamento na vida cotidiana (a ética).
Jesus proclama
felizes os que têm fome e sede dessa experiência íntima, os que estão insatisfeitos
com o pouco ou muito que alcançaram no caminho árduo da sua cristificação.
Sabem que
estrada imensa lhes resta ainda a percorrer; mas sabem que é glorioso
continuarem a andar rumo a seu grande destino. São como aves migratórias que, à
aproximação do outono, percebem em si o tropismo de regiões distantes, nunca
vistas, onde a luz e o calor, já em declínio na zona do seu habitat, se acham
em plena ascensão. Daí o misterioso magnetismo que as atrai para regiões
longínquas.
Para que o homem
sinta em si essa espécie de nostalgia metafísica, deve ele, ter ultrapassado
certas fronteiras de vivência comum; deve sentir certo cansaço — ia quase dizendo
pessimismo — da vida terrestre, deve sentir, com maior ou menor intensidade e nitidez,
o anseio de algo que nunca viu, mas de cuja existência tem intuitiva certeza.
O homem que
ainda vive totalmente engolfado nos afazeres da lufa -lufa comum dos profanos,
caçadores de matéria morte e carne viva , esse não está maduro para ter fome e
sede de um mundo invisível. Antes de sentir essa fome, terá de experimentar o
fastio daquilo de que agora tem fome. “Quem bebe desta água (das coisas
materiais) torna a ter sede (das mesmas); mas quem beber da água que eu lhe
darei, esse nunca mais terá sede (da s coisas materiais)” porque esta água se
lhe tornará em uma fonte que jorra para a vida eterna.
Sendo que as
coisas materiais não apagam o desejo; pelo contrário, quanto mais gozadas tanto
mais acendem o desejo, porque a posse aumenta o desejo, e o desejo exige novas
posses — os profanos têm de intensificar cada vez mais os estímulos para
sentirem ainda novos gozos; e, não raro, procuram narcotizar-se com os pequenos
finitos de cada dia para não sofrerem a insatisfação de que estas coisas não
podem dar definitiva satisfação.
Em vez de
ultrapassarem a barreira das quantidades e entrarem na zona da qualidade,
tentam aumentar as quantidades - assim como quem bebe água salgada para apagar
a sede, acendendo-a cada vez mais.
* * *
O divino Mestre
proclama felizes os que sofrem essa fome e sede da experiência de Deus, porque
eles serão “saciados”.
É certo que, um
dia, em outros mundos, essa nostalgia será satisfeita, porque a natureza não
engana seus filhos, impelindo-os a um alvo fictício. Se existem terras
tropicais adivinhadas pelas aves migratórias das zonas frias, não pode deixar
de existir aquele mundo que os anseios metafísicos dos melhores dentre os
filhos dos homens sentem nas profundezas da alma.
Ainda que o
finito em demanda do Infinito tenha sempre diante de si itinerário ilimitado, e
jamais chegará a um ponto onde lhe seja vedado progredir ulteriormente — porque
não há “luz vermelha” nos caminhos de Deus — é certo que o humano viajor
chegará a um ponto em que a sua compreensão e amor de Deus o tornará
profundamente feliz.
Livro: O Sermão
da Montanha.
Huberto Rohden
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