É constante, em todos os livros sacros
da humanidade, a afirmação de que Deus é luz.
Antigamente,
essa comparação parecia ser apenas um arroubo poético, e não uma verdade filosófica;
porqüanto é sabido que a luz enche de vida, beleza e alegria o universo
inteiro.
Hoje em dia,
porém, na alvorada da Era Atômica, entrou essa verdade em uma nova fase de
significação; ultrapassou as fronteiras da beleza poética e invadiu os domínios
da ciência física e da verdade metafísica.
Sabemos, em
nossos dias, que a luz cósmica, não focalizada — o “c” da conhecida fórmula
einsteiniana, E = mc2 — é a base e, por
assim dizer, a matéria-prima de todas as coisas do mundo material e astral. Os
92 elementos da química, desde o mais simples ou Hidrogênio), até ao mais complexo ou Urânio), são filhos da
luz invisível, a qual quando condensada em diversos graus, produz os elementos,
e destes são feitas todas as coisas do mundo.
Quer dizer que,
no plano físico, a luz é a causa e origem de todas as matérias e forças do
universo.
Ora, o que a luz
é no plano físico, isto é Deus na ordem metafísica ou espiritual do cosmos. A
luz física é o grande símbolo desse simbolizado metafísico.
Deus, segundo
Aristóteles, é actuspurus (pura atividade); nele não há passividade, ou, no dizer
de João Evangelista, “Deus é luz, e nele não há trevas”.
Ora, afirma o
divino Mestre que ele é a luz do mundo, e que também seus discípulos são a luz
do mundo — quer dizer que a essência de Deus está nele e neles.
A luz é a única
coisa incapaz de ser contaminada, porque a sua vibração é máxima, que não é
afetada por nenhuma vibração inferior.
Todas as coisas
do mundo são lucigênitas, e sua íntima essência é luz ou lucidez. E tanto mais incontaminável
é uma coisa quanto mais lúcida.
A afirmação de
que os discípulos do Cristo são luz, a mesma luz divina do Cristo, é um veemente
convite, quase um desafio, para a completa lucificação da existência humana
pela essência divina. A mente do homem é como que um invólucro semitranslúcido,
e o corpo um invólucro totalmente opaco; no interior desses invólucros, porém,
está a luz integral da divindade, que se individualizou no homem como seu Eu
central.
Toda a tarefa da
espiritualização do homem consiste em que ele faça a sua existência humana tão
pura e luminosa como a sua essência divina. — que essencialize toda a sua existência.
A lucidez ou luminosidade
consiste na intensidade da nossa consciência divina. No plano da ideologia
dualista, em que se move quase toda a teologia e filosofia do ocidente cristão,
é difícil o homem convencer-se definitivamente de que a íntima essência do seu
próprio ser seja idêntica à essência divina.
A verdade,
porém, é esta: o homem não está separado de Deus, como não é idêntico a Deus,
mas é distinto de Deus. Esse “ser distinto”, é por assim dizer, equidistante do
“ser separado” e do “ser idêntico”, equidistante do dualismo transcendentista e
do panteísmo imanentista. Esse “ser distinto” de Deus, baseado no “ser
idêntico” pela essência e no “ser diferente” pela existência faculta ao homem a
divinização da sua vida, sem o levar ao absurdo da deificação, garantindo-lhe
assim, a responsabilidade ética dos seus atos conscientes e livres. Se o homem
é moralmente bom, virtuoso, não é Deus que é bom nele, mas ele mesmo; se o
homem é moralmente mau, pecador, não é Deus que é mau nele, mas é o homem. Quem
pratica virtude ou comete pecado é o homem existencial, e não o homem
essencial, é o elemento humano nele e não o elemento divino.
Diz, pois, o divino Mestre: “Vós sois a luz do
mundo... Não pode permanecer oculta uma cidade edificada sobre um monte; nem se
acende uma lâmpada e se põe debaixo do alqueire, mas sim sobre o candelabro
para que alumie a todos os que estão na casa. Assim brilhe a vossa luz perante
os homens para que vejam as vossas boas obras — e glorifiquem a vosso Pai que
está nos céus.
O homem
realmente cristificado não deve o cultar-se debaixo do alqueire do anonimato, mas
brilhar no candelabro da mais larga publicidade — deve ser até como uma cidade
ou um farol no alto de um monte, para que o mundo inteiro veja os fulgores
dessa luz e por ela oriente a sua vida.
A comparação, tanto com o candelabro
como com o monte, diz visibilidade, publicidade, porque o arauto do reino de
Deus não é um “ocultista”, mas sim um emissário da luz cósmica, ele mesmo é a
“luz do mundo”, que é expansiva por sua própria natureza.
É opinião assaz
comum entre os inexperientes que o homem espiritual deva evitar a publicidade e
procurar o mais possível a obscuridade da solidão e do anonimato, a fim de não perder
a sua sacralidade e cair vítima da profanidade. E, de fato, essa solidão e esse
anonimato são necessários, embora num sentido diferente daquele que os profanos
supõem.
O ego
físico-mental do homem comum deve desaparecer no anonimato, e o seu Eu divino
deve viver em profunda solidão. O homem espiritual deve ser profundamente solitário
com Deus, para que possa ser vastamente solidário com todas as criaturas de
Deus: assim não há perigo de profanação.
Ai daquele que perder
a sua silenciosa sacralidade em Deus! De nada lhe servirá a sua ruidosa
sociabilidade com os homens e o mundo. A profana sociedade tem de ser fecundada
pela mística sacralidade para que resulte em fecunda solidariedade.
Em suas relações
com Deus é todo homem profundamente só e solitário; ninguém o pode acompanhar a
essas alturas e profundezas, envoltas em eterno silêncio. Ninguém poderá saber
jamais o que se passou entre a alma e Deus, nas silenciosas alturas do Himalaia
ou na taciturna vastidão do Saara onde se dá esse encontro entre Deus e a alma
humana. A experiência mística se dá para além das barreiras do tempo e do
espaço, no anonimato do “terceiro céu”, e por isso é essencialmente
intransferível e incomunicável; o que é dito à alma, nessa luminosa escuridão,
são “ditos indizíveis”.
Essa solidão
vertical é necessária e não pode jamais ser substituida pela sociedade horizontal.
Esse santuário íntimo do homem é indevassável; nem as relações mais íntimas, de
pai a filho, de mãe e filha, de esposo a esposa, de amigo a amigo, podem
desvendar esse mistério. Onde não existe e persiste essa solidão cósmica, esse
profundo silêncio metafísico, esse indevassável anonimato místico entre a alma
e Deus, toda a publicidade é um perigo e uma profanação, é uma apostasia e uma
infidelidade cometida contra a sacralidade do Eu divino. O homem que não possua
suficiente fidelidade ao seu Eu divino não deve arriscar-se à publicidade; não
deve colocar-se no alto do candelabro ou no cume do monte; é preferível que fique
debaixo do alqueire ou no fundo do vale, onde não há perigo de quedas
catastróficas.
Quanto mais alto
o homem está, mais profundamente poderá cair, se essa altura lhe der vertigens.
O perigo da
vertigem vem da ilusão de que essa sublime posição seja obra do seu ego personal,
vem do erro fatal de que a pessoa humana tenha criado essa glória no alto do candelabro
ou no cume do monte.
Duas vezes, diz
um grande iniciado oriental, Brahman se sorri do homem, da primeira vez quando
o homem afirma: “Eu faço isto, eu faço aquilo”, e da segunda vez quando o homem
diz: “Eu vou morrer.
Ambas às vezes o
homem confunde o seu verdadeiro Eu com o seu pseudo-eu. Quando o homem pensa
que é ele — seu ego personal — que fez isto ou aquilo, e não o “pai dos céus” —
o seu Eu divino; quando o homem pensa que o seu eterno e imortal Eu divino vai
morrer — então se revela totalmente analfabeto no conhecimento de si mesmo.
Onde há ilusão
há possibilidade de queda. Só quando a totalidade da ilusão cedeu à totalidade
da verdade é que há segurança absoluta.
Tem-se dito que
a experiência mística torna o homem orgulhoso e desprezador de seus semelhantes,
os “profanos” lá embaixo. Quem assim pensa e fala não sabe o que quer dizer experiência
mística. Esse orgulho é possível no caso da pseudomística, quando o homem atribui
a sua espiritualidade ao mérito de seu ego personal, ignorando que “todo o dom
perfeito vem de cima, do Pai das luzes”, e que a iluminação espiritual é obra
da graça divina. Mas, ninguém pode orgulhar-se daquilo que é de Deus, só se
pode envaidecer de algo que seja do seu ego.
Um jovem
ocultista britânico perguntou a um grande místico da Índia se achava que ele, o
ocultista, poderia, um dia, chegar a fazer as “obras de poder”, chamadas
“milagres”, que Jesus fazia; ao que o iniciado lhe respondeu calmamente: “Pode,
sim, contanto que você não creia que é você que fez essas obras.”
Quem atribui a
seu pequeno ego humano qualquer obra espiritual está no erro; o erro gera o
orgulho, e o orgulho prepara a queda. Mas quem compreendeu definitivamente que nenhum
efeito espiritual pode provir de uma causa material ou mental, esse está na
verdade, e a verdade o libertará de qualquer ilusão e perigo de queda.
Quando Jesus diz
a seus discípulos que devem colocar a sua luz no candelabro ou no alto do monte
supõe ele que esses homens possam ultrapassar o estágio da Ilusão sobre si mesmos
e adquirir plena clareza e certeza sobre a causa real de todos os efeitos
espirituais.
Neste sentido,
acrescenta ele: “assim brilhe a Vossa luz perante os homens para que vejam as
Vossas boas obras e glorifiquem a VOSSO Pai que está nos céus” — que vejam os efeitos
visíveis e glorifiquem a causa invisível O ego humano, sendo apenas uma função
do Eu divino, nada fez por si mesmo, assim Como uma ferramenta não produz nada
se não for usada pelo homem.
Não existe, no
mundo físico, nenhum elemento incontaminável exceto a luz. Todas as outras
coisas aceitam impureza. Quando, por exemplo, lavamos com água pura um objeto impuro,
a água se torna impura na mesma razão em que purifica o objeto impuro; não pode
neutralizar senão apenas transferir para si as impurezas do Outro. A água é
sumamente contaminável, ou “vulnerável” Só a luz é incontaminável invulnerável;
pode penetrar em todas as impurezas do mundo sem se tornar impura.
É esta, sem
dúvida a mais pura glória do homem crístíco, poder ser puro no meio dos impuros
e das impurezas em derredor; purificar as impurezas sem se contaminar com essas
impurezas É o máximo de invulnerabilidade.
Essa
invulnerabilidade interior é pureza, pureza de coração.
Essa pureza da
invulnerabilidade nasce unicamente da experiência clara e nítida da verdadeira natureza
humana, que é essencialmente divina, e, como Deus é puro e invulnerável, deve também
a essência divina do homem participar dessa pureza e invulnerabilidade.
A impureza
consiste na ilusão de que o pequeno ego humano realize coisas espirituais e possa
produzir a redenção do homem, como pensava aquele ego luciférico que tentou ao Cristo,
no deserto. Egoísmo é impureza, e tanto mais vulnerável é o homem quanto mais impuro,
e tanto menos vulnerável quanto mais puro de coração.
Essa pureza do
coração nasce do conhecimento da verdade, ao passo que a impureza nasce da
ilusão.
Nenhum homem
purificado pelo conhecimento da verdade sobre si mesmo se orgulha da sua
espiritualidade, mas agradece humildemente a Deus por essa dádiva, porque sabe
que não foi ele, seu ego físico-mental, que produziu esse efeito, mas que foi a
graça de Deus.
Nenhum homem
purificado pelo conhecimento da verdade sobre si mesmo não se sente ofendido
por atos, palavras ou opiniões injustas dos outros, porque sabe que essas
ofensas não atingem o seu verdadeiro Eu divino, senão apenas o seu falso eu
humano. Sabe que nenhum mal que outros lhe fazem lhe faz mal, porque não o faz
mau.
Se alguém ofende
o paletó ou a blusa que visto, não ofende a mim, porque eu não sou o paletó nem
a blusa; isto é meu, mas não sou eu; é algo que eu tenho, mas não o que eu sou.
Da mesma forma,
quem ofende o ego da minha persona — que quer dizer “mascara” não ofende a mim,
porque eu não sou essa máscara da personalidade. Eu sou a minha divina individualidade,
que é absolutamente invulnerável pelo lado de fora, pelas adversidades da natureza
ou pelas perversidades dos homens! Quem me pode ofender é só aquele que está do
lado de dentro, isto é, o meu ego humano. Quem vulnera o Eu é o ego; quem peca
Contra a divina individualidade do Eu é a humana personalidade do ego — Lúcifer
versus Lógos!
Esta luz divina
que em mim está deve ser colocada no candelabro Como uma lâmpada, no alto do
monte como um farol. Quem é remido do seu falso eu pode ajudar outros para se redimirem
também. Por isso, deve ele fazer brilhar a sua luz, porque essa luz é a luz de
Deus que brilha através do homem, como através de um límpido cristal, no caso
que o homem renuncie à opacidade do seu egoísmo e aceite a transparência do
amor.
***
O homem profano
é impuro no meio dos impuros. O homem místico é puro longe dos impuros.
O homem crístico
é puro no meio dos impuros, assim como a luz é pura no meio das impurezas.
O impuro no meio
dos impuros é, geralmente, ruidosamente social.
O puro longe dos
impuros é silenciosamente Solitário.
O puro no meio
dos impuros é serenamente solidário.
Por via de
regra, para que o homem possa ser serenamente solidário
com toda a humanidade, solidamente
crístico, é necessário que tenha passado pelo estágio da solidão silenciosa, profundamente
mística, longe da sociedade dos impuros, ruidosamente profanos. E nesse período
da mística solitária que o homem lança os alicerces inabaláveis para o seu
edifício crístico de solidariedade universal. Uma vez que o homem ultrapassou
certa fronteira interna de experiência de Deus em si mesmo, está definitivamente
imunizado contra as velhas enfermidades do homem profano — cobiça, luxúria,
vanglória, egoísmo, desejo de aplausos e admiração, expectativa de resultados
palpáveis, medo de castigo ou esperança de prêmio — de todas essas doenças
convalesceu para sempre o homem que chegou ao conhecimento da verdade sobre si
mesmo, seu verdadeiro Eu divino, e não mais corre perigo de recair nessas misérias,
porque a verdade o libertou de toda a ilusão e escravidão. Ele é livre e puro
como a luz.
Mas, também, é
suave e benévolo como a luz solar, em pleno dia, e não violento e destruidor
como a veemência de um raio em plena noite. Só depois que o homem aprendeu por
experiência íntima, no silencioso abismo da mística, o que é Deus e o que é ele
mesmo, é que ele pode atrever-se a ser de todas as criaturas de Deus sem deixar
de ser de Deus, pode andar por todos os mundos de Deus sem deixar de ser do
Deus do mundo.
Ai do homem que
quiser ser solidário com os homens antes de ser solitário com Deus!
Ai do homem que
se derramar pelas ruidosas periferias das criaturas antes de estar firmemente
alicerçado no silencioso centro do Criador!
Nenhum homem
pode ser, por fora, de todas as criaturas de Deus sem que seja, por dentro, só
de Deus.
Nenhum homem
pode ser plenamente crístico sem que seja profundamente místico.
Só o contato
direto com o Infinito é que torna o homem invulnerável no meio dos finitos.
E essa
invulnerabilidade crística nada tem de lúgubre, de pessimista, de negativo, de
triste — ela é toda leve e luminosa, amável e sorridente como sua irmã gêmea,
no mundo físico, a luz, que é suavemente poderosa e poderosamente suave.
Pela mística
solidão com Deus adquire a alma uma espécie de castidade, de intensa virgindade
espiritual, que, depois, na Crística solidariedade com os homens, se revela em fecunda
maternidade, mãe de numerosos filhos de Deus. Essas núpcias espirituais da alma
crística supõem a pura virgindade da alma mística.
No início de
toda a vida nova está o sentimento natural do pudor. A vida é um mistério tão
sagrado que a sua transmissão deve ser velada em profunda escuridão, oculta
pelo véu invisível do pudor, tanto no plano biológico como no plano espiritual
da humanidade. A experiência mística é uma concepção espiritual, que deve ser
velada em mistério. É que se passa, na solidão anônima, entre uma alma e Deus
nunca ninguém o saberá, nem deve saber; está envolto em impenetrável pudor; só
as conseqüências desse encontro místico da alma com Deus é que podem ser
reveladas, na vida diária do homem cristificado.
A vida do homem
cósmico é pura como a luz, na sua solidão mística — e é fecunda como a luz, na
sua solidariedade crística...
“Vós sois a luz
do mundo”...
“Brilhe diante
dos homens a vossa luz!”...
Livro: O SERMÃO
DA MONTANHA
HUBERTO ROHDEN.
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