Repousava Dona
Beatriz no leito bem-posto, patenteando enorme cansaço. A doença, decerto,
consumia-lhe a forma física, desde muito, porqüanto aos quarenta e sete anos de
idade mostrava o rosto singularmente engelhado e o corpo leve.
Refletia,
ensimesmada, tristonha... Fácil de se lhe ver a preocupação, ante a crise
iminente.
Idéias a lhe
fluírem, vivas e nobres, indicavam que se habituara à certeza da desencarnação
próxima. Notava-se-lhe fixada no pensamento a convicção do viajante que
atingira o término de espinhosa trilha, da qual, por fim, lhe competia sair.
Conquanto
tranqüila, inquietava-se pelos vínculos que a prendiam no mundo.
Apesar disso,
visualizava as portas do Além, plasmando formosos quadros íntimos, como quem
sonha à luz da vigília, e recordava Neves, o pai que perdera na infância, qual
se visse prestes a recuperá-lo, em definitivo, tal a extensão do amor que os acolchetava
um ao outro.
Observávamos,
porém, sem dificuldade, que a alma afetuosa da enferma se dividia mais
fortemente, na Terra, entre o esposo e o filho, dos quais se reconhecia em
gradativo processo de inevitável separação.
No aposento
acolhedor, que alguns adereços ataviavam, tudo transparecia limpeza,
reconforto, assistência, carinho.
Ante o leito,
encontramos sisudo enfermeiro desencarnado que Neves abraçou, demonstrando
guardá-lo à conta de imensa estima.
E
apresentou-nos:
- Amaro, temos
aqui André Luiz, amigo e médico que, doravante, nos partilhará os serviços.
Saudamo-nos
cordialmente.
Neves inquiriu,
atencioso:
— O irmão Félix
veio hoje?
— Sim, como
sempre.
Informei-me,
então, de que o irmão Félix, desde muitos anos, era o superintendente de
importante casa socorrista, ligada ao Ministério da Regeneração, em Nosso Lar
(2). Famoso pela bondade e paciência, era conhecido como sendo um apóstolo da
abnegação e do bom-senso.
Não dispúnhamos,
entretanto, de qualquer tempo para considerações pessoais.
Dona Beatriz
experimentava dores agudas e o companheiro mostrou o propósito de aliviá-la,
através do passe confortativo, enquanto a senhora se via aparentemente a sós.
Em grande prostração física, revelava profunda sensibilidade mediúnica.
Oh! os sublimes
pensamentos do leito de dor!... De olhos cerrados, a doente, embora não
assinalasse a presença paterna, lembrava a ternura do genitor, que lhe parecia
distante e inacessível no tempo. Identificava-se, de novo, com a ingenuidade
infantil... Na acústica da memória, ouvia as canções do lar, voltava, encantada,
às horas da meninice... Reconstituindo na imaginação as relíquias do berço,
sentia-se no regaço paternal, à maneira da ave de regresso à penugem do ninho!
Dona Beatriz
chorava. Lágrimas de enternecimento inexprimível perolavam-lhe a face. E sem
que a boca enunciasse o menor movimento, clamava intimamente com toda a alma:
«pai, meu pai!...”. Meditai, vós que, no mundo, admitis para os desencarnados a
indiferença da cinza! Para lá dos túmulos, amor e saudade muitas vezes se
transformam, no vaso do coração, em pranto comburente!
Neves cambaleou,
agoniado... Enlacei-o, contudo, a pedir-lhe coragem. A ventania da angústia,
porém, sobre o ânimo do companheiro atribulado, perdurou apenas alguns
momentos.
Refeito, a
recompor o semblante que o sofrimento transfigurara, espalmou a destra na
fronte da filha e orou, suplicando o amparo da Bondade Divina.
Chispas de luz,
quais minúsculas flamas azulíneas, evolavam-lhe do tórax, a se projetarem
naquele corpo fatigado, revestindo-o de energias calmantes.
Emocionado,
observei que Dona Beatriz se acomodava a suave torpor. E antes que pudesse
enunciar qualquer impressão, uma jovem, figurando-se nas vinte primaveras da
experiência física, entrou cautelosamente no quarto. Renteou conosco, sem
perceber-nos, de leve, e tomou o pulso da enferma, verificando-lhe as condições.
A recém-chegada
esboçou o gesto de quem reconhecia tudo em ordem.
Encaminhou-se,
logo após, na direção de pequenino armário próximo e, munindo-se dos recursos
necessários, voltou à cabeceira da dona da casa, aplicando-lhe injeção
anestesiante.
Dona Beatriz não
mostrou a mínima reação, continuando a descansar, sem dormir.
O concurso
magnético de minutos antes insensibilizara-lhe os centros nervosos.
Perfeitamente
tranqüila, a moça, na qual observávamos a posição da enfermeira improvisada,
retirou-se para um dos ângulos do aposento, a largar-se em acolhedora poltrona
de vime. Em seguida, descerrou um dos segmentos da janela quadripartida,
atraindo a corrente de ar fresco que nos bafejou sem alarde.
Respirando à
saciedade, a jovem, com grande surpresa para mim, acendeu um cigarro e passou a
fumar distraidamente, dando a idéia de quem diligenciava fugir de si mesma.
Neves fitou-a,
deitando-lhe significativo olhar em que se mesclavam piedade e revolta e,
indicando-a, discreto, informou-me:
— Trata-se de
Marina, contadora de meu genro, que se dedica ao comércio de imóveis...
Agora, a pedido
dele, desempenha funções de assistente...
Evidente
sarcasmo transparecia-lhe da palavra reticenciosa.
- Imagine! —
voltou a dizer — fumar aqui. Numa câmara de dor, onde a morte está sendo
esperada!...
Contemplei
Marina, cujos olhos denotavam recôndita inquietude.
Manifestando
ainda alguns laivos de respeitosa estima para com a nobre senhora estirada no
leito, soprava, para além da janela, as baforadas cinzentas que lhe escapavam
da boca.
Repartindo a
própria atenção entre ela e Amaro, o nosso amigo da esfera espiritual, Neves,
conquanto mudo e constrangido, parecia querer falar à vontade e desinibir-se.
Tentei, porém,
adquirir mais amplo conhecimento da posição.
Aproximei-me
reverentemente da jovem, no propósito de sondá-la em silêncio e colher-lhe as
vibrações mais intimas; contudo, recuei assustado.
Estranhas
formas-pensamentos, retratando-lhe os hábitos e anseios, em contradição com os
nossos propósitos de socorrer a doente, fizeram-me para logo sentir que Marina
se achava ali, a contragosto. A sua mente vagueava longe...
Quadros vivos de
esfuziante agitação ressumavam-lhe na cabeça... De olhar parado, escutava,
adentro de si própria, a música brejeira da noite festiva, que atravessara na
véspera, e experimentava ainda na garganta a impressão do gim que sorvera,
abundante.
Apesar de
surgir-nos, superficialmente, à guisa de menina crescida, sob o turbilhão de
névoa fumarenta, exibia telas mentais complexas, a lhe relampaguearem na aura
imprecisa.
Trazido pelas
circunstâncias a colaborar na solução de um processo assistencial, sem qualquer
intuito menos digno, passei a estudar-lhe o comportamento isolado. A Medicina
terrestre, no futuro, para atender com eficácia, ao doente, examinar-lhe-á, com
minúcias, a feição espiritual de todas as peças humanas que lhe articulam a
equipe.
Respeitoso,
iniciei os apontamentos de ampla anamnese psicológica.
Marina
apresentou, a princípio, a figura de um homem amadurecido, cunhada por sua
própria imaginação, a repetir-se-lhe, muitas vezes, acima da fronte.
Ela e ele,
juntos... Percebia-se-lhes, de pronto, a intimidade, adivinhava-se-lhes o
romance...
Fisicamente,
semelhavam pai e filha; entretanto, pelas atitudes sentimentais, não conseguiam
disfarçar a estuante paixão um pelo outro. Nos painéis sutis que surgiam e se
desfaziam, alternadamente, mostravam-se ambos extasiados, ébrios de prazer,
fosse aboletados no automóvel de luxo ou enlaçados na areia morna das praias,
conchegados sob a proteção de arvoredo tranqüilo ou sorridentes em tumultuados
abrigos de encantamento noturno... Deslumbrantes paisagens de Copacabana ao
Leblon desfilavam por admirável fundo pictórico.
A moça
entrefechava as pálpebras para senhorear, com mais segurança, as reminiscências
que lhe empolgavam os sentidos, para, logo após, mentalizar, surpreendentemente,
outro homem, tão jovem quanto ela mesma, evidenciando-se-nos entregue às cenas
de um filme interior, diferente...
Formava novo
tipo de palco para exibir a lembrança das próprias aventuras, no qual se
destacava igualmente ao pé do rapaz, como se estivesse afeiçoada aos mesmos
sítios, desfrutando companhias diversas... Ela e ele também juntos, no mesmo
carro entrevisto ou na condição de pedestres felizes, saboreando refrescos ou
repousando em animados entendimentos nos jardins públicos, sugerindo o encontro
de crianças enamoradas, a entretecerem aspirações e sonhos..
Naqueles rápidos
minutos de fixação espiritual, em que se exteriorizava tal qual era, Marina
revelava a personalidade dúplice da mulher dividida entre o carinho de dois
homens, jugulada por pensamentos de medo e inquietude, ansiedade e
arrependimento.
Neves, que de
algum modo me partilhava a inspeção, quebrou a calma reinante, enunciando,
abatido:
— Está vendo?
Julga que é fácil para mim, pai da doente, suportar aqui semelhante criatura?
Tratei de
consolá-lo e, por solicitação dele próprio, passamos a pequeno salão de
leitura, contíguo ao aposento da enferma, a fim de que pudéssemos refletir e conversar.
Livro: SEXO E DESTINO
FRANCISCO
CÂNDIDO XAVIER E WALDO VIEIRA
DITADO PELO
ESPÍRITO ANDRE LUIZ
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