Acomodados, de
novo, no aposento próximo. buscava soerguer o ânimo de Neves, positivamente
desapontado.
Arrojara-se o
companheiro ao clima da dignidade ofendida, dando a impressão de que a família
encarnada ainda lhe pertencia. Exprobrava a conduta do genro.
Exalçava os
merecimentos da filha. Aludia ao passado, quando ele próprio vencera lances
difíceis na luta sentimental.
Desculpava-se.
Ouvia-lhe,
condoído, os apontamentos, a refletir, de minha parte, quanto à dificuldade com
que somos todos nós defrontados para dissipar a ilusão da posse sobre os
outros. Não fosse a obrigação de respeitar-lhe os sentimentos e, certo, me exorbitaria,
ali mesmo, em comprida tirada filosófica, recomendando o desprendimento:
contudo, logrei apenas confortá-lo:
— Não se aflija.
Desde muito aprendi que para as pessoas desencarnadas, quase sempre, as portas
do lar se fecham no mundo, quando a morte lhes cerra os olhos.
Entretanto, não
pude prosseguir.
À guisa de duas
crianças enlevadas e jubilosas, Nemésio e Marina penetraram a câmara, fugindo
claramente à presença da enferma.
Guardavam no
semblante a expressão dos namorados felizes, quando alimentam o clássico «enfim sós»,
trancando-se contentes.
Dispus-me,
instintivamente, a sair, mas Neves sustou-me o impulso de retirada, convidando-me,
aturdido:
— Fique,
fique... Não louvo a indiscrição; no entanto, estou, ao lado de minha filha, em
sentido direto, simplesmente há alguns dias e devo saber o que ocorre, para ser
útil...
A esse tempo,
Nemésio enlaçara a enfermeira, qual se voltasse, de improviso, aos
arrebatamentos da juventude. Amimava-lhe as mãos miúdas e os cabelos sedosos,
reportando-se ao futuro. Justificava-se, copiando as preocupações de um adolescente,
interessado em vacinar a escolhida contra o ciúme. Deveriam ser bons para
Beatriz, às portas do fim, e agradecer ao Destino que os livrava dos
aborrecimentos e percalços de um desquite, mesmo amigável...
Ouvira o médico,
na véspera, informando-se de que a doente não conseguiria viver mais que
algumas semanas. E sorria, qual menino travesso, explicando que não admitia a
sobrevivência da alma; no entanto, a seu ver, se houvesse vida além da morte,
não desejava que a esposa partisse, nutrindo por eles ressentimentos quaisquer.
Apaixonado, procurava convencer-se de que se via correspondido, cravando a
atenção nos olhos enigmáticos da companheira, a quem se reconhecia imanizado
por intensa atração.
Marina
retribuia, como quem se deixava querer bem; no entanto, apresentava o fenômeno
singular da emoção jungida a ele e o pensamento voltado ao outro, empenhando-se,
por todos os meios, a encontrar nesse outro o incentivo necessário a essa mesma
emoção.
Nemésio
comentava os próprios empeços, sensibilizado.
Confessava-lhe
devoção inexcedível. Não a queria de ânimo inquieto. De futuro, abandonaria os
negócios. Viveriam felizes, na casinha de São Conrado, que transformaria em
bangalô confortável, entre o verde do mar e o verde da terra.
Mandaria
aprestar a reconstrução em estilo novo, a fim de que a moradia os recebesse, no
momento oportuno. Que ela confiasse. Aguardaria apenas a modificação do próprio
estado social para conferir-lhe o título de esposa, esposa para sempre.
Isso tudo era
dito num jogo de manifestações carinhosas em que a sinceridade prevalecia num
lado e o cálculo no outro.
Assinalei,
porém, estranha ocorrência.
Ele e ela
comunicavam-se, entre si, as mais ternas expansões de encantamento recíproco,
sem ser dissoluto, e pareciam aderir, automaticamente, às impressões que
esboçávamos, de vez que acompanhávamos os mínimos gestos dos dois, com aguçada
observação, prejulgando-lhes os desígnios com o fundo de nossas próprias
experiências inferiores já superadas.
Semelhantes
registros que formulamos, com absoluta imparcialidade, são dignos de nota,
porqüanto, atento qual me achava ao estudo, vimo-nos obrigados a reconhecer que
a nossa expectativa maliciosa, aliada ao espírito de censura, estabelecia
correntes mentais estimulantes da turvação psíquica de que ambos se viam
acometidos, correntes essas que, partindo de nós na direção deles, como que lhes
agravava o apetite sensual.
O marido de
Beatriz acentuava, em transportes de felicidade juvenil, embora a voz ciciante,
o anseio com que lhe aguardava o carinho permanente no refúgio caseiro.
De inopinado,
porém, a jovem prorrompeu em pranto copioso.
O companheiro
beijou-lhe a face, aspirando a aliviar-lhe a tensão convulsiva.
De nosso lado,
entretanto, reparávamos que Marina se fixava, cada vez mais, no moço cuja
figura se lhe engastava à imaginação.
Escabroso, sem
dúvida, o conflito de que se verificava possuída, à vista da sinceridade
inequívoca de todas as promessas que lhe eram endereçadas.
Olvidando os
compromissos abraçados, perante a esposa, que lhe requisitava, naquela hora,
mais amplas evidências de fidelidade e ternura, bandeara-se o chefe da casa,
apaixonadamente, para ela, entregando-se-lhe sem reservas. Inteligente bastante
para entender quanto se lhe debilitara o raciocínio de homem circunspecto, a
menina identificava a fase perigosa da partida infeliz a que se lançara e
aturdia-se, ali, confundida entre aflições e remorsos a lhe arpoarem o coração.
Compelidos pelas
circunstâncias à penetração dos assuntos em exame, assinalávamos as telas
mentais da moça, a se lhe derramarem do Intimo, irradiando-lhe a história.
Fizera-se
querida pelo maduro genro de Neves, sem dedicar-lhe outros sentimentos que não
fossem reconhecimento e admiração... Todavia, agora que os acontecimentos lhe
impeliam a alma na direção de laços mais profundos, tremia pelas indébitas
concessões que lhe havia feito. Remoía-lhe no espírito as recônditas reminiscências
de sua aventura afetiva, recapitulando todos os sucessos pelos quais havia
atraído o protetor experiente aos seus métodos sutis de sedução, para concluir,
assustada, que amava até à loucura aquele rapaz franzino, que se lhe destacava
do pensamento, através de cativantes apelos da memória.
Dentro dela,
embatia-se guerra terrível de emoções e sensações.
Nemésio
consolava-a, formulando frases de paternal solicitude. E, ao responder-lhe às
reiteradas perguntas, quanto ao choro intempestivo, a jovem adotou largo processo
de perfeita dissimulação, invocando problemas domésticos para articular evasivas
com que encobria a realidade.
Tentando
esquivar-se de si mesma, reportou-se a supostas agruras do lar.
Salientou
exigências maternas, falou em dificuldades financeiras, alegou fantásticas humilhações
que colhia no trato da irmã adotiva, mencionou incompreensões do genitor, em
rixas constantes nos círculos da família...
O interlocutor
reconfortou-a. Que não se amofinasse. Não estaria a sós.
Partilhar-lhe-ia
todos os impedimentos e dissabores, fossem quais fossem. Tivesse paciência. O
desenlace de Beatriz, indicado para breves dias, ser-lhes-ia o marco fundamental
da ventura definitiva.
Exprimia-se Nemésio
em tom de súplica. E talvez percebendo que apenas à força de palavras não
conseguiria subtrai-la aos soluços, arrancou de pasta próxima um livro de
cheques, colocando-lhe expressivo concurso amoedado nas mãos que o lenço
molhado umedecera.
A moça pareceu
mais comovida, exibindo no rosto a apreensão de quem se recriminava sem
qualquer justificativa de consciência, ao passo que ele a enlaçava, afetuoso.
No silêncio que sobreveio, voltei-me para Neves, mas não consegui pronunciar
palavra.
Não obstante
desencarnado, o amigo se me afigurava agora um homem positivamente vulgar da
Terra, que a revolta azedava. Sobrecenho crispado alterava-lhe a feição no
desequilíbrio vibratório que precede as grandes crises de violência.
Receava se lhe
transfigurasse a calamidade emotiva em agressão, mas sucedeu o imprevisto.
A súbitas,
venerando amigo espiritual penetrou a câmara.
Arrebatadora
expressão de simpatia marcava-lhe a presença. Radioso halo circundava-lhe a
cabeça; no entanto, não era a luz suave a se lhe extravasar docemente da aura
de sabedoria que me impressionava e sim a substância invisível de amor que lhe
emanava da individualidade sublime. Fitei-lhe os olhos, de relance, com a
idéia enternecedora de quem revia um companheiro, longamente esperado por
aflitivas saudades acumuladas no coração.
Fluidos
calmantes banhavam-me todo, qual se fosse visitado no âmago do ser por
inexplicáveis radiações de envolvente alegria.
Onde teria
conhecido, nas trilhas do destino, aquele amigo que se me impôs ao sentimento
qual irmão de velhos tempos? Debalde vascolejei a memória naqueles segundos
inolvidáveis.
Num átimo, vi-me
recambiado às sensações puras da infância. O emissário, que estacara à frente
de nós, não me fazia retomar simplesmente a segurança a que me habituara,
quando menino, ante os braços paternos, mas também ao carinho de minha mãe, que
nunca se me apartara do pensamento.
Oh! Deus, em que
forja da vida se constituem esses elos da alma? em que raízes de júbilo e
sofrimento, através das reencarnações numerosas de trabalho e esperança,
dívidas e resgates, se compõe a seiva divina do amor que aproxima os seres e
lhes transfunde os sentimentos numa só vibração de confiança recíproca?
Levantei meus
olhos de novo para o benfeitor que se avizinhava e fui compelido a sofrear a
própria emotividade a fim de não retê-lo instintiva-mente em arremessos de
regozijo.
Erguemo-nos de
chofre.
Após
cumprimentá-lo, disse Neves, então desanuviado, a apresentar-me quase sorrindo:
— André, abrace
o Irmão Félix...
Adiantou-se,
porém, o recém-chegado, ofertando-me um abraço e proferindo saudação calorosa,
com o evidente propósito de frustrar quaisquer elogios no nascedouro.
— Grande
contentamento o de vê-lo — disse, benevolente.
— Deus o
abençoe, meu amigo...
A comoção,
entretanto, imobilizava-me. Não logrei arrancar do coração à boca as expressões
com que anelava pintar o meu enlevo, mas osculei-lhe a destra com a
simplicidade de uma criança, rogando-lhe mentalmente receber as lágrimas que me
caíam da alma, por mudo agradecimento.
Ocorreu, em
seguida, algo de inusitado.
Nemésio e Marina
transferiram-se, de repente, a novo campo de espírito.
Confirmei a
impressão de que a nossa curiosidade enfermiça e a revolta que dominava Neves
até então haviam funcionado ali por estímulos ao magnetismo animal a que se
ajustavam os dois enamorados, que nem de leve desconfiavam da minuciosa
observação a que se viam sujeitos, porqüanto bastou que o irmão Félix lhes
dirigisse compassivo olhar para que se modificassem, incontinenti.
A visão de
Beatriz enferma cortou-lhes o espaço mental, à feição de um raio.
Esmoreceram-se-lhes
os estos de paixão. Assemelhavam-se ambos a um par de crianças, atraidas uma para
a outra, cujo pensamento se transfigura, de improviso, ante a presença materna.
E não era só
isso. Não podia auscultar o mundo Intimo de Neves; contudo, de minha parte,
súbita compreensão me inundou a alma. E se eu estivesse no lugar de Nemésio?
Estaria agindo melhor?
— Silenciosas indagações se me incrustavam na
consciência, impelindo-me o espírito a raciocinar em nível mais alto.
Fitei o
atribulado chefe da casa, possuido de novos sentimentos, percebendo nele um
verdadeiro irmão que me cabia entender e respeitar. Embora confessando a mim mesmo, com
indisfarçável remorso, a impropriedade da atitude que assumira, momentos antes,
prossegui estudando a metamorfose espiritual que se processava.
Marina passou a
revelar benéfica reação, como me estivesse admiravelmente conduzida em
ocorrência mediúnica, de antemão preparada. Recompôs-se, do ponto de vista
emotivo, patenteando integral desinteresse por qualquer forma de entretenimento
físico, e falou, com delicadeza, da necessidade de voltar aos cuidados que a
doente exigia. Nemésio, a refletir-lhe a renovada posição interior, não
ofereceu qualquer embargo, acomodando-se em poltrona próxima, enquanto a jovem
se retirava, tranqüila.
Reparei que
Neves ansiava conversar, desabafar-se; no entanto, o benfeitor, que nos
granjeara os corações, apontou o esposo de Dona Beatriz e convidou:
— Meus amigos,
nosso Nemésio está seriamente enfermo, sem que ainda o saiba. Ignoro se já lhe
notaram a deficiência orgânica... Procuremos socorrê-lo.
Livro: SEXO E DESTINO
FRANCISCO
CÂNDIDO XAVIER E WALDO VIEIRA
DITADO PELO
ESPÍRITO ANDRE LUIZ
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