Respondida a
pergunta sobre Filosofia devemos tratar ligeiramente da natureza do
Espiritismo. E nada mais necessário do que isso, porque nada mais desconhecido
em nosso mundo do que ele. Fala‐se muito em
Espiritismo, mas quase nada se sabe a seu respeito. Kardec afirma, na
introdução de “O LIVRO DOS ESPÍRITOS”, que a força do Espiritismo não está nos fenômenos,
como geralmente se pensa, mas na sua filosofia, o que vale dizer na sua mundividência,
na sua concepção da realidade. Mas de onde vem essa concepção? Como foi
elaborada?
Os adversários do
Espiritismo desconhecem tudo a respeito e fazem tremenda confusão. Os próprios
espíritas, por sua vez, na sua esmagadora maioria estão na mesma situação. Por
quê? É fácil explicar. Os adversários partem
do preconceito e agem por precipitação. Os espíritas em geral fazem o mesmo:
formularam uma idéia pessoal da Doutrina, um estereótipo mental a que se
apegaram. A maioria, dos dois lados, se esquece desta coisa importante: o
Espiritismo é uma doutrina que existe nos livros e precisa ser estudada. Trata‐se,
pois, não de fazer sessões, provocar fenômenos, procurar médiuns, mas de
debruçar o pensamento sobre si mesmo, examinar a concepção espírita do mundo e
reajustar a ela a conduta através da moral espírita.
Assim, temos
alguns dados: o Espiritismo é uma doutrina sobre o mundo, dá‐nos
a sua interpretação e nos mostra como nos devemos conduzir nele. Mas como
nasceu essa doutrina, em que cabeça apareceu pela primeira vez? Dizem que foi
na de Allan Kardec, mas não é verdade. O próprio Kardec nos diz o contrário. Os
dados históricos nos revelam o seguinte: o Espiritismo se formou lentamente
através da observação e da pesquisa científica dos fenômenos espíritas, hoje
parapsicologicamente chamados de fenômenos paranormais. Os estudos científicos
começaram seis anos antes de Kardec, nos Estados Unidos, com o famoso caso das irmãs
Fox em Hydesville. Quando Kardec iniciou as suas pesquisas na França, em 1845,
já havia uma grande bibliografia espírita, com a denominação de
neoespiritualista, nos Estados Unidos e na Europa. Mas foi Kardec quem
aprofundou e ordenou essas pesquisas, levando‐as às necessárias consequências
filosóficas, morais e religiosas.
“O LIVRO DOS ESPÍRITOS"
nos oferece a súmula do trabalho gigantesco de Kardec. Mas se quisermos
conhecer esse trabalho em profundidade temos de ler toda a bibliografia
kardeciana: os cinco volumes da codificação doutrinária, os volumes
subsidiários e mais os doze volumes da Revista Espírita, que nos oferecem o
registro minucioso das pesquisas realizadas na Sociedade Parisiense de Estudos
Espíritas. E precisamosnos interessar também pelos trabalhos posteriores de
Camille Flammarion, de Gabriel Dellane, de Ernesto Bozzano, de Léon Denis (que
foi o continuador e o consolidador do trabalho de Kardec).
Veremos, assim,
que Kardec partiu da pesquisa científica, originando‐se
desta a Ciência Espírita; desenvolveu a seguir a interpretação dos resultados
da pesquisa, que resultou na Filosofia Espírita; tirou, depois, as conclusões morais
da concepção filosófica, que levaram naturalmente à Religião Espírita. É por
isso que o Espiritismo se apresenta como doutrina de tríplice aspecto. A Ciência
Espírita é o fundamento da Doutrina. Sobre ela se ergue a Filosofia Espírita. E
desta resulta naturalmente a Religião Espírita. Muitas pessoas se atrapalham com
isso e perguntam: “Como uma doutrina pode ser, ao mesmo tempo, Ciência,
Filosofia e Religião?” Mas essa pergunta revela a ignorância do processo
gnoseológico. Porque, na verdade, o conhecimento se desenvolveu nessa mesma
sequência e em todas as formas atuais de conhecimento repete‐se
o processo filogenético.
No Espiritismo,
porém, esse processo aparece bem preciso, bem marcado por suas fases
sucessivas, entrosadas numa sequência lógica. Podem alguns críticos alegar que
Kardec não partiu da pesquisa, mas da crença. Alguns chegam a afirmar que foi
assim, que ele já acreditava nas comunicações espíritas antes de iniciar o seu
trabalho de investigação. Mas essa afirmação é falsa, a suposição é gratuita.
Basta uma consulta às anotações íntimas de “OBRAS PÓSTUMAS” e às biografias do
mestre para se ver o contrário. Quando lhe falaram pela primeira vez em mesinhas
falantes, Kardec respondeu como o fazem os céticos de hoje: “Isso é conversa
para fazer dormir em pé”. Só deixou essa atitude cética depois de constatar a
realidade dos fenômenos. Então pesquisou, aprofundou a questão e levou‐a
às últimas consequências, como era, aliás, de seu hábito, do seu feitio de
investigador. Charles Richet lhe faz justiça (embora discordando dele) em seu
“Tratado de Metapsíquica”.
Encarando a obra
de Kardec pelo seu aspecto científico, sem os preconceitos que têm impedido a
sua justa avaliação, ela nos parece inatacável. Alega‐se
que o seu método de pesquisa não era científico, mas foi ele o primeiro a
explicar que não se podiam usar na pesquisa psíquica os métodos das ciências físicas.
O desenvolvimento da Psicologia provaria mais tarde que Kardec estava com a
Razão. Hoje, as pesquisas parapsicológicas o confirmam.
No tocante ao
aspecto filosófico, o desenvolvimento atual das investigações mostram a posição
acertada do Espiritismo como doutrina assistemática, “livre dos prejuízos de
espírito de sistema”, como declara “O LIVRO DOS ESPÍRITOS", utilizando a
conjugação dos métodos indutivo e dedutivo para o esclarecimento da realidade
em seu duplo sentido: o objetivo e o subjetivo. A Filosofia Espírita se
apresenta como antecipação das conquistas atuais do campo filosófico e abertura
de perspectivas para o futuro.
Livro: Introdução
à Filosofia Espírita.
José Herculano
Pires.
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