A mulher e a
ressurreição
1 As águas alegres
do Tiberíades ( † ) se aquietavam, de manso, como tocadas por uma força
invisível da natureza, quando a barca de Simão, conduzindo o Senhor, atingiu
docemente a praia.
O velho apóstolo,
abandonando os remos, deixava transparecer nos traços fisionômicos as emoções
contraditórias de sua alma, enquanto Jesus o observava, adivinhando-lhe os
pensamentos mais recônditos.
— Que tens tu,
Simão? — Perguntou o Mestre, com o seu olhar penetrante e amigo.
2 Surpreendido com
a palavra do Senhor, o velho Cephas deu, por um gesto, a perceber os seus
receios e as suas apreensões, como se encontrasse dificuldade em esquecer
totalmente a lei antiga, para penetrar os umbrais da ideia nova, no seu caminho
largo de amor, de luz e de esperança.
— Mestre, —
respondeu com timidez, — a lei que nos rege manda lapidar a mulher que perverteu
a sua existência. ( † )
3 Conhecendo, por
antecipação, o pensamento do pescador e observando os seus escrúpulos em lhe
atirar uma leve advertência, Jesus lhe respondeu com brandura:
— Quase sempre,
Simão, não é a mulher que se perverte a si mesma; é o homem que lhe destrói a
vida.
4 — Entretanto, —
tornou o apóstolo, respeitosamente, — os nossos legisladores sempre ordenaram
severidade e rispidez para com as decaídas. Observando os nossos costumes,
Senhor, é que temo por vós, acolhendo tantas meretrizes e mulheres de má vida,
nas pregações do Tiberíades…
— Nada temas por
mim, Simão, porque eu venho de meu Pai e não devo ter outra vontade, a não ser
a de cumprir os seus desígnios sábios e misericordiosos.
5 Assim falou o
Mestre, cheio de bondade, e, espraiando o olhar compassivo sobre as águas,
levemente encrespadas pelo beijo dos ventos do crepúsculo, continuou, num misto
de energia e doçura:
— Mas, ouve,
Pedro! A lei antiga manda apedrejar a mulher que foi pervertida e desamparada
pelos homens; entretanto, também determina que amemos os nossos semelhantes,
como a nós mesmos. ( † ) E o meu ensino é o cumprimento da lei, pelo amor mais
sublime sobre a Terra. Poderíamos culpar a fonte, quando um animal lhe polui as
águas? De acordo com a lei, devemos amar a uma e a outro, seja pela expressão
de sua ignorância, seja pela de seus sofrimentos. E o homem é sempre fraco e a
mulher sempre sofredora!…
6 O velho pescador
recebia a exortação com um brilho novo nos olhos, como se fora tocado nas
fibras mais íntimas do seu espírito.
— Mestre, —
retrucou, altamente surpreendido, — vossa palavra é a da revelação divina.
Quereis dizer, então, que a mulher é superior ao homem, na sua missão
terrestre?
— Uma e outro são
iguais perante Deus, — esclareceu o Cristo, amorosamente, — e as tarefas de
ambos se equilibram no caminho da vida, completando-se perfeitamente, para que
haja, em todas as ocasiões, o mais santo respeito mútuo. 7 Precisamos
considerar, todavia, que a mulher recebeu a sagrada missão da vida. Tendo
avançado mais do que o seu companheiro na estrada do sentimento, está, por
isso, mais perto de Deus que, muitas vezes, lhe toma o coração por instrumento
de suas mensagens, cheias de sabedoria e de misericórdia. 8 Em todas as
realizações humanas, há sempre o traço da ternura feminina, levantando obras
imperecíveis na edificação dos Espíritos. Na história dos homens, ficam somente
os nomes dos políticos, dos filósofos e dos generais; mas, todos eles são
filhos da grande heroína que passa, no silêncio, desconhecida de todos, muita
vez dilacerada nos seus sentimentos mais íntimos ou exterminada nos sacrifícios
mais pungentes. Mas, também Deus, Simão, passa ignorado em todas as realizações
do progresso humano e nós sabemos que o ruído é próprio dos homens, enquanto
que o silêncio é de Deus, síntese de toda a verdade e de todo o amor.
9 Por isso, as mulheres
mais desventuradas ainda possuem no coração o gérmen divino, para a redenção da
humanidade inteira. Seu sentimento de ternura e humildade será, em todos os
tempos, o grande roteiro para a iluminação do mundo, porque, sem o tesouro do
sentimento, todas as obras da razão humana podem perecer como um castelo de
falsos esplendores.
10 Simão Pedro
ouvia o seu Mestre, tomado de profundo enlevo e santificado fervor admirativo.
— Tendes razão,
Senhor! — Murmurou, entre humilde e satisfeito.
— Sim, Pedro,
temos razão, — replicou Jesus, com bondade. — E será ainda à mulher que
buscaremos confiar a missão mais sublime na construção evangélica, dentro dos
corações, no supremo esforço de iluminar o mundo.
11 O apóstolo do
Tiberíades ouvira as derradeiras palavras do Divino Mestre, tomado de surpresa.
Conservou-se, no entanto, em silêncio, ante o sorriso doce do Messias.
Muito distante, o
último beijo do Sol punha um reflexo dourado no leque móvel das águas que as
correntes claras do Jordão ( † ) enriqueciam. Simão Pedro, fatigado do labor
diário, preparou-se para descansar, com sua alma clareada pelas novas
revelações da palavra do Senhor, as quais, cheias de luz e de esperança
divinas, dissipavam as obscuridades da lei de Moisés.
12 Dois dias tinham
passado sobre o doloroso drama do Calvário, em cuja cruz de inominável martírio
se sacrificara o Mestre, pelo bem de todos os homens. Penosa situação de dúvida
reinava dentro da pequena comunidade dos discípulos. Quase todos haviam
vacilado na hora extrema. O raciocínio frágil do homem lutava por compreender a
finalidade daquele sacrifício. Não era Jesus o poderoso Filho de Deus que
consolara os tristes, ressuscitara mortos, sarara enfermos de doenças
incuráveis? Por que não conjurara a traição de Judas com as suas forças
sobrenaturais? Por que se humilhara assim, sangrando de dor, nas ruas de
Jerusalém, ( † ) submetendo-se ao ridículo e à zombaria? Então, o emissário do
Pai Celestial deveria ser crucificado entre dois ladrões?!
13 Enquanto essas
questões eram examinadas, de boca em boca, a lembrança do Messias ficava
relegada a plano inferior, olvidada a sua exemplificação e a grandeza dos seus
ensinamentos. O barco da fé não soçobrara inteiramente, porque ali estavam as
lágrimas do coração materno, trespassado de amarguras.
14 O Messias
redivivo, porém, observava a incompreensão de seus discípulos, como o pastor
que contempla o seu rebanho desarvorado. Desejava fazer ouvida a sua palavra
divina, dentro dos corações atormentados; mas, só a fé ardente e o ardente amor
conseguem vencer os abismos de sombra entre a Terra e o Céu. E todos os
companheiros se deixavam abater pelas ideias negativas.
15 Foi então,
quando, na manhã do terceiro dia, a ex-pecadora de Magdala se acercou do
sepulcro com perfumes e flores. ( † ) Queria, ainda uma vez, aromatizar aquelas
mãos inertes e frias; ainda uma vez, queria contemplar o Mestre adorado, para
cobri-lo com o pranto do seu amor purificado e ardoroso. No seu coração estava
aquela fé radiosa e pura que o Senhor lhe ensinara e, sobretudo, aquela
dedicação divina, com que pudera renunciar a todas as paixões que a seduziam no
mundo. Maria Magdalena ia ao túmulo com amor e só o amor pode realizar os
milagres supremos.
16 Estupefata, por
não encontrar o corpo [do] bem amado, já se retirava entristecida, para dar
ciência do que verificara aos companheiros, quando uma voz carinhosa e meiga
exclamou brandamente aos seus ouvidos:
— Maria!…
17 Ela se supôs
admoestada pelo jardineiro; mas, em breves instantes reconhecia a voz inesquecível
do Mestre e lhe contemplava o inolvidável sorriso. Quis atirar-se-lhe aos pés,
beijar-lhe as mãos num suave transporte de afetos, como fazia nas pregações do
Tiberíades; porém, com um gesto de soberana ternura, Jesus a afastou,
esclarecendo:
— Não me toques,
pois ainda não fui a meu Pai que está nos Céus!… ( † )
18
Instintivamente, a Magdalena se ajoelhou e recebeu o olhar do Mestre, num
transbordamento de lágrimas de inexcedível ventura. Era a promessa de Jesus que
se cumpria. A realidade da ressurreição era a essência divina, que manteria
eternidade ao Cristianismo.
A mensagem da
alegria ressoou, então, na comunidade inteira. Jesus ressuscitara! O Evangelho
era a verdade imutável. Em todos os corações pairava uma divina embriaguez de
luz e júbilos celestiais. Levantava-se a fé, renovava-se o amor, morrera a
dúvida e reerguera-se o ânimo em todos os espíritos. Na amplitude da vibração
amorosa, outros olhos puderam vê-lo e outros ouvidos lhe escutaram a voz
dulçorosa e persuasiva, como nos dias gloriosos de Jerusalém ou de Cafarnaum.
19 Desde essa
hora, a família cristã se movimentou no mundo, para nunca mais esquecer o
exemplo do Messias. A luz da ressurreição, através da fé ardente e do ardente
amor de Maria Magdalena, havia banhado de claridade imensa a estrada cristã, para
todos os séculos terrestres.
20 É por isso que
todos os historiadores das origens do Cristianismo param a pena, assombrados
ante a fé profunda dos primeiros discípulos que se dispersaram pelo deserto das
grandes cidades para pregação da Boa Nova, e, observando a confiança serena de todos
os mártires que se têm sacrificado na esteira infinita do Tempo pela ideia de
Jesus, perguntam espantados, como Ernest Renan, ( † ) numa de suas obras: n
— Onde está o
sábio da Terra que já deu ao mundo tanta alegria, como a carinhosa Maria de
Magdala?
Humberto de Campos
- (Irmão X) / Chico Xavier.
Livro: Boa Nova.
[1] Histoire des
origines du christianisme, par Ernest Renan: Les Apôtres, Volume 2. — Google
Books.
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