sábado, 14 de dezembro de 2013

Bem-Aventurados os Misericordiosos - Huberto Rohden

Misericordioso é aquele que tem coração para os míseros; aquele que compreende e ama os fracos, os ignorantes, os doentes, todos os necessitados de corpo, mente e alma, e procura aliviar-lhes os sofrimentos.
Verdade é que o Cristianismo não é, simplesmente, a religião da ética ou caridade; ele é, essencialmente, místico, na sua infinita verticalidade divina. mas, também, é certo que ninguém chega a essas alturas místicas da direta experiência de Deus se não se exaurir em caridades éticas para com seus semelhantes; e, depois de atingir as excelsitudes da mística, nunca deixará de manifestar pelo “segundo mandamento” o “primeiro e maior de todos os mandamentos”.
O homem meramente profano é ruidosamente.
O homem místico é silenciosamente solitário.
Mas o homem plenamente crístico é dinamicamente solidário.
Essa solidariedade dinâmica do homem cristificado não exclui, mas inclui a solidão espiritual do místico. O homem crístico é, por dentro, unicamente de Deus, e, por fora, de todas as criaturas de Deus.
Ninguém pode ser, firme e fecundamente, solidário com os homens se não for, sólida e profundamente, solitário em Deus. A fraternidade humana supõe a paternidade de Deus.
Os misericordiosos receberão misericórdia, não da parte dos homens aos quais mostraram misericórdia, mas por parte de Deus, em cujo divino amor está radicada a verdadeira caridade humana e de cujo seio brota sem cessar.
Quanto mais o homem dá, na horizontal, tanto mais recebe, na vertical. Existe uma lei cósmica que produz infalívelmente o enriquecimento do homem que em si mantém, permanentemente, uma atitude doadora, que está sempre disposto a dar do que tem e a dar o que é, isto é, ajudar a seus semelhantes com os objetos que possui e com o amor do próprio sujeito que ele é. Não basta “fazer o bem” (dar objetos) — é necessário também “ser bom” (dar o sujeito). O Cristianismo não é uma religião meramen te ética, que ensine a fazer o bem — mas é sobretudo, uma religião mística, que exige que o homem seja bom. Fazer o bem é o cumprimento do segundo mandamento, “amarás o teu próximo como a ti mesmo”; ser bom é a atitude do primeiro e maior de todos os mandamentos, “amarás o senhor teu Deus de todo o teu coração, com toda a tua alma, com toda a tua mente e com todas as tuas forças”.
Pode alguém fazer o bem sem ser bom, porque esse ‘bem” é apenas um objeto — mas ninguém pode ser bom sem fazer o bem, porque esse “ser bom” é o próprio sujeito, que, como o próprio vocábulo diz, “subjaz” (jaz por debaixo) como causa a todos os efeitos, que “o bjazem” (jazem defronte ou de fora). Não são os efeitos que produzem a causa, mas é a causa que produz os efeitos; não são os objetos, o “fazer bem”, que produzem o sujeito, o “ser bom”, mas sim vice-versa, o “ser bom” produz o “fazer bem”. A mística produz a ética. Se a mística de alguém não produz a ética, é porque não é real, mas apenas uma pseudomística.
Existe, certamente, uma espécie de ética anterior à mística, e ela é até necessária para preparar o caminho para este; mas essa ética pré-mística é sempre difícil, dolorosa, sacrificial — e todos sabem por experiência que as coisas difíceis não têm garantia de perpetuidade.
Somente a ética post-mística, que brotou das fecundas profundezas da experiência de Deus, é que é fácil e deleitosa, e tem sólida garantia de perpetuidade.
Por isso, os misericordiosos que Jesus proclama bem-aventurados não são apenas pessoas eticamente boas, fazedoras do bem — mas são pessoas misticamente perfeitas, experientes de Deus, e, por isto, essencialmente boas.
Esses homens essencialmente perfeitos pelo imediato contato com Deus são, também, existencialmente bons pela solidariedade com todas as criaturas de Deus. Quem viveu misticamente o Deus do mundo, vive eticamente com todo o mundo de Deus, porqüanto a profunda vertical da mística produz necessariamente a vasta horizontal da ética — é esta a grandiosa matemática cósmica da Verdade Libertadora.
“Conhecereis a Verdade e a Verdade vos libertará.” Esses misericordiosos receberão misericórdia, não dos homens, mas de Deus. A misericórdia que eles fazem a seus semelhantes não é causa, mas condição para que recebam misericórdia de Deus, porque ninguém pode merecer causalmente uma dádiva divina; tudo que é espiritual e divino é essencialmente gratuito, é de graça, porque é graça; é, todavia, necessário que o homem crie dentro de si o clima propício para que essa dádiva gratuita lhe possa ser concedida; esse clima propício, ou essa receptividade, é que é a condição, que em hipótese alguma é causa.
Quem espera recompensa, pagamento, pelos benefícios que presta à humanidade é egoísta, mercenário, ainda que essa recompensa consista apenas no desejo de reconhecimento ou gratidão da parte de seus beneficiados. Esse desejo não deixa de ser egoísta e mercenário e tolhe ao homem a “gloriosa liberdade dos filhos de Deus”, tornando –o escravo e prisioneiro de uma prisão muito perigosa, porque sumamente sutil e, aparentemente, justificada, como é o desejo de gratidão. O beneficiado, é certo, tem a obrigação de ser grato, mas o benfeitor não tem o direito de esperar gratidão. Com esse desejo, por mais secreto e bem camuflado, ele inutilizaria a sua ação e tolheria a si mesmo a liberdade.
O homem crístico está liberto de qualquer espírito mercenário; trabalha inteiramente de graça, nem espera resultado algum externo de seus trabalhos. Trabalha por amor à sua grande missão, pois sabe que é embaixador plenipotenciário de Deus aqui na terra e em outros mundos. E é por isso, que ele trabalha com o máximo de perfeição e alegria em tudo, tanto nas coisas grandes como nas coisas pequenas. Nunca trabalha para ter público que o aplauda. Por isso, não o exaltam louvores, nem o deprimem censuras; é indiferente a vivas e a vaias, a aplausos e a apupos, a benquerenças e malquerenças, porque se libertou definitivamente de todas as escravidões do homem profano, do “homem velho”, e se revestiu da leve e luminosa vestimenta do “homem novo” liberto pela Verdade.
Esse homem vive permanentemente na atmosfera serena e sorridente da “gloriosa liberdade dos filhos de Deus”, cujo diploma crístico vem resumido nas seguintes palavras: “Quando tiverdes feito tudo o que devíeis fazer, dizei: “Somos servos inúteis, cumprimos apenas a nossa obrigação, nenhuma recompensa merecemos por isto”...
São estes os misericordiosos que alcançarão misericórdia — esses bem-aventurados...
Livro: O Sermão da Montanha.
Huberto Rohden

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